Para não esquecer...

OS PORTUGUESES E O DEBATE

Debate

Os portugueses estão zangados, disso não há dúvida. Estão zangados com tudo, e, principalmente, uns com os outros. Esbracejam, atiram murros para o ar, flechas envenenadas embrulhadas em palavras mais ou menos insultuosas. E até da ironia se socorrem. Ironia não menos ofensiva, diga-se. É a panela de pressão a rebentar por onde pode, para não explodir em fúria assassina. E se explodir não haverá cravos na ponta da espingarda. A cor vermelha terá outra proveniência. O diabo seja cego, surdo e mudo.

Mas compreende-se que andem enervados, impacientes. A Troika invadiu-lhes o quotidiano, os média anunciam o apocalipse, mas não levantam o véu todo. E os políticos ainda menos.

E não há grande coisa a esperar do futuro. Sabem como é: em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.

Há 2 ou 3 dias, assisti a uma cena caricata na bicha da caixa do supermercado: uma senhora esquecida do número do Cartão Jumbo, com o fito do desconto, não abdicou do seu direito,
(em tempo de vacas magras não se descartam cartões, sobretudo, se derem desconto)
e fez parar a engrenagem. A menina da Caixa, simpaticamente, para não perder o magro sustento, ofereceu-se para “fazer a operação à mão”. Só que para conseguir que alguém do outro lado do fio do telefone desse o aval, levou o seu tempo. E havia pessoas à espera! Poucas, felizmente. A senhora sorriu, a desculpar-se. Um cavalheiro, muito pouco cavalheiro, diga-se,
(em tempo de vacas magras não há cavalheiros. E nos outros, desconfio de que também não)
com duas ou três compras na mão, e a mulher pequena e encolhida à ilharga, declarou, a pressionar a menina da Caixa, ao telefone: então, isto não anda? Vou-me mas é embora, e não levo as compras!

Se bem o pensou em voz grossa, melhor o fez. Rodou nos calcanhares e saiu ostensivamente sem as compras. Um herói. Um macho. E com ele a mulher, sem voto na matéria
(em tempo de vacas magras, as mulheres, às vezes, não têm voto na matéria. Desconfio que esta nem nos outros).
A menina da caixa disse, contida: ainda bato em alguém!

A senhora, preocupada, disse numa voz meiga, quase súplice: não se zangue comigo!

A menina da caixa disse, pressurosa: não, consigo não!

No meu tempo ela teria dito: não, com a senhora não. Mas estamos no tempo das vacas magras em tudo; não se pode exigir muito das pessoas.

Apetece-me citar aqui José Gil, e o seu “Medo de Existir”:
Os Portugueses não sabem falar uns com os outros, nem dialogar, nem debater, nem conversar. Duas razões concorrem para que tal aconteça: o movimento saltitante com que passam de um assunto para outro e a incapacidade de ouvir
Eu pergunto: isto também se passa em política, na Assembleia da República? Não, sou eu a delirar.

E vivam os baldes de pipocas, e os barris de Coca-Cola, e os filmes de acção e efeitos especiais, e o barulho das buzinas, e a carestia de vida da qual já a minha mãe se queixava
(creio que sempre se queixou).
Morra o FMI, morra! Pim.

escrito por Gabriela Correia, Faro

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