Para não esquecer...

OS AMORES DA LUA, DO MAR E DO SOL

A memória habitada pelo recente eclipse lunar sussurra-me as ligações entre a Lua e o Mar. A ciência garante-as, alicerçando-as em objectividade e rigor. Fruto de tais ligações são, no Mar, as marés.

Mas esse, o científico, é um discurso prosaico, a que falta a poesia de Mestre Feliciano. A poesia e a "sabença de marinheiro", tal como é apresentada em Avieiros de Alves Redol. Palavras do Mestre, para a sua pequena Olinda:
Quando o Mar respira, dá cabeças de água. É quando a Lua mostra a cara toda. O Mar e a Lua são companheiros. Andam sempre juntos. É um casal que se entende bem. Quando a Lua se zanga, o Mar escoicinha. E a gente é que paga. O Mar tem oito dias de refôlego e oito dias a morrer. No quarto crescente tem pontas de maré; no quarto minguante as águas estão mortas; andam fracas e o teu pai traz o saco da rede sem peixe. É uma coisa que me quebra a cabeça, esta da Lua e do Mar. Tão longe um do outro... Naturalmente é por isso que se dão bem"
Estes amores entre o Mar e a Lua têm história antiga, com o Sol pelo meio. Esta:
A Lua era uma princesa que vivia na Terra, num grande palácio, mais lindo que tudo que há no mundo. Tinha muitas aias...
- Que é isso?!
- São criadas, Linda. Os seus cabelos eram de oiro muito compridos, tão compridos que, quando andava, era como se levasse um manto atrás dela. Não havia na Terra
uma cara assim. Cresceu e fez-se mulher. Um dia, o pai quis casá-la. Mandou ministros por todo o mundo a dizer a nova: "Vai casar a princesa Lua!" Encheram-se todos os caminhos que davam ao palácio. Eram carros, cavalos brancos...
- Porquê cavalos brancos?...
- São mais bonitos.
-Ah!...
- Até veio gente a pé de casa do Inferno para a princesa escolher marido. Foi pondo de banda, pondo de banda, e no fim só ficaram dois".
Ela ajeitava-se-lhe nas pernas e agarrava-lhe a mão. Mestre Feliciano sorria e continuava:
"- Um era rei. O mais rico de todo o mundo. Rei e feiticeiro. Punha flores onde queria, fazia as árvores dar folhas e frutos lindos.
- Quem era?!...
- Era o Sol.
- Ah!...
- O outro era um pobre de Cristo, vestido de azul, de um azul que ninguém conhecia.
- Era o Mar?. ..
- Pois era. Esse era o Mar. E a princesa escolheu o Mar. O pai gostava do Sol. Teimou com ela. Mandou vir fadas e nenhuma conseguiu voltar-lhe a ideia. Meteu-a num quarto e não houve luz na Terra não sei por quantos dias. Depois mandou prender o Mar com correntes de ferro, tão grossas, tão grossas que cada argola... eu sei lá!
- Mais grossas que um boi...
- Quantas vezes!"
Via-o sorrir.
"- Bem amarrado, o Mar aquietou-se, à espera. O pai da princesa entregou-a ao Sol e ele levou-a para o seu reino.
-Onde é?...
- Lá em cima, no Céu... Mas o Mar, quando soube, enfureceu-se. Gritou, abriu os braços e partiu as correntes. E espalhou-se por todo o mundo à procura dela. Fez-se um gigante, meigo como ninguém; mas quando se zanga, nada há que o aquiete senão a Lua. Só ela, quando o namora lá de riba, o faz brando.
- E o Sol casou com ela?
- Nunca mais lhe pôs a vista em cima. O seu reino é grande e ela fugiu-lhe. Se ele está num lado, ela aparece no outro, para ver o Mar. Ela gosta é do Mar. E as estrelas que andam à volta dela são os guardas que o Sol mandou para a agarrar. Mas nenhuma lhe deita a mão, porque as estrelas gostam também do pobre vestido de azul. E há uma, a Estrela da Manhã, que vem sempre avisá-los, mal adivinha o Sol. Então, a Lua abala e o Mar vai vê-la no outro lado da Terra."
P.S.: chegados aqui, fica a sugestão de ler e ouvir Mar e Lua de Chico Buarque: Todo mundo conta / Que uma andava tonta / Grávida de lua / E outra andava nua / Ávida de mar

escrito por ai.valhamedeus

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