Para não esquecer...

A IRIDESCÊNCIA DOS DIAS - 6

Prefiro falar inglês, disse a jovem voz feminina, num Português perfeito.

A voz do homem ouvia-se em pano de fundo, mas não se percebia em que língua se exprimia.

Apareceram, por fim, à entrada do bar: ela esguia, um tudo nada mais alta, talvez por força do tamanho dos saltos. Toda ela negritude: no pisar, na tez, na roupa. Trajava um vestido negro, muito justo, que lhe realçava o rabo bamboleante de negra, meias pretas e sapatos da mesma cor. Os cabelos longos e um pouco encaracolados, soltos, a acrescentarem mais cor preta ao conjunto.

Era a negra mais negra que eu já vira, ao vivo. Enfim, como já disse, um belo exemplar de negritude. A atestar a veracidade da expressão, cunhada nos anos 70, se não estou em erro, “black is beautiful”. E era, benza-a Deus!

O homem que a acompanhava era um cinquentão branco, com princípio de calvície, de cuja beleza ninguém teria inveja.

Aproximaram-se do balcão, onde o jovem empregado, de avental e laço preto sobre a camisa branca, os aguardava com ar de quem já viu muito nesta vida, apesar da pouca idade.

O homem falou num inglês fluente, pedindo dois whiskies duplos. O empregado habituado a toda a casta de clientes, perguntou à mulher o que é que ela desejava, em Português. Ela ainda tentou falar inglês, mas de tão atrapalhado que lhe saiu, e das dificuldades demonstradas, desistiu e respondeu na língua materna.

Para meu espanto, o companheiro começou a exprimir-se na língua de Camões, usando-a com desenvoltura, apenas com um leve sotaque. Não cheguei a perceber a sua proveniência, nem onde aprendera o português. Confesso que também não percebi aquela da preferência de a comunicação entre eles se fazer em inglês.

Ainda perguntaram se podiam fumar ali. Novamente em português. À resposta negativa, devem ter perguntado se o poderiam fazer no quarto, pois ouvi o empregado pronunciar a palavra “janela”.

Levantei a cabeça do jornal, quando ouvi a voz da bela negra dizer, titubeante, na retranca: no, if I was married… Ele não lhe deu tempo a que torturasse mais a língua que ela obviamente não dominava. Interrompendo-a com autoridade… because, it happened to my wife…

O empregado chegara, entretanto, com os copos e o balde de gelo.

Daí a pouco, perante o silêncio que se fizera, olhei na direcção do empregado e apercebi-me de que só já estava eu na sala e ele atrás do balcão, retomando a tarefa que fora interrompida com a chegada do “casal”.

Ele olhou para mim com um sorriso cúmplice e desabafou: viu, sabiam falar português e a quererem falar em inglês. Mas eu falei sempre em português. Era o que faltava, disse ele, com orgulho patriótico.

Sabe, ele deve ter disto, e fez um gesto com os dedos, a indicar Money, Money. Ela, que podia ser filha dele; deve ser modelo ou hospedeira. Vê-se aqui cada coisa! De mais sabiam eles que não podiam fumar aqui, foi um pretexto para pedirem para levar a bebida para o quarto. Parece a Casa dos Segredos!

Perante a minha cara de ignorância, apressou-se a dizer: não vê o programa? Eu também não vejo, mas contam-me.

Aconselhei-o a não se meter na vida de cada qual, porque a vida de cada um só ao próprio diz respeito. Ele concordou.

Mas lá que se via cada coisa, via.

[Faro, 15 de Janeiro de 2014, pelas “cinco de la tarde”]

escrito por Gabriela Correia, Faro

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