Para não esquecer...

HISTÓRIAS JURÍDICAS * 1

Semanalmente, às segundas-feiras, vamos ter aqui uma história jurídica baseada no que os nossos tribunais vão decidindo ou acordando. Vou tentar descomplicar (se não acabar por fazer o contrário…) e descodificar a partir do juridez

As histórias são casos resolvidos pelos nossos tribunais e que me pareçam de interesse geral. Atenção que, como é óbvio, cada caso aqui tratado pode não se aplicar ao seu caso, caro leitor. “Cada caso é um caso” e pode haver nuances que, por ventura, podem não encaixar no seu caso.

A 1ª história

O Supremo Tribunal de Justiça foi chamado a resolver o seguinte problema:

António
(nos casos práticos, na Faculdade, era assim que se identificavam os intervenientes: A, B, C, etc.) 
tinha ficado viúvo do seu primeiro casamento e tinha três filhas
(do Acórdão fico na dúvida se eram duas se três, mas tanto faz, neste caso). 
Os herdeiros da mulher
(o marido e as três filhas) 
não fizeram partilhas dos bens deixados pela falecida. O marido voltou a casar, com Belinha, no regime de separação de bens. Nessa altura lembrou-se de fazer um testamento a favor da mulher e de duas filhas, dizendo que deixava o direito a metade que tivesse sobre o bem imóvel A à mulher, Belinha, o direito a metade que tivesse sobre o imóvel B à filha Cristina e o direito a metade que tivesse sobre o imóvel C, à filha Deodata.

A filha Eleonarda, descontente, pespegou uma ação contra a madrasta e as irmãs dizendo que o pai não podia ter dado qualquer direito que tinha sobre aqueles bens, pois, pertencendo à comunhão, não podia dispor deles. Mas o Tribunal
(da comarca de Viseu, julgo eu) 
considerou que o António tinha procedido bem, pois dispôs de um direito que teria sobre aqueles bens.

Inconformada, a Eleonarda recorreu para a Relação do Porto, que veio a considerar tais disposições nulas. Inconformadas, agora a viúva Belinha e as filhas Cristina e Deodata interpuseram recurso para o Supremo que veio a decidir da seguinte maneira.

A Eleonarda tem toda a razão. O António não poderia ter dado o direito a metade que tivesse sobre os bens A, B e C, porque, por morte da sua primeira mulher, os bens integrantes da herança indivisa não conferem ao António dispor de qualquer bem em concreto – coisa que ele fez. O António somente tem direito a uma quota ideal da herança
(neste caso ½, que era a sua metade e mais ¼ da metade que era da herança da sua mulher) 
e não o direito sobre um bem em concreto, ao contrário do que fez.

Portanto, amigo, se quiser dispor de algum bem em concreto e se se encontrar nesta situação, tenha calma. Faça a partilha dos bens, tenha a certeza DE que o bem é só seu, para que o beneficiário não tenha surpresas desagradáveis.

Estes e outros acórdãos podem ser consultados em http://www.dgsi.pt/. Este é assinado pelo Conselheiro Acácio das Neves, antigo juiz em Vila Real de Santo António, que conheço bem, e o acórdão é de 29 de janeiro deste ano. Fresquinho, portanto.

Duas chamadas de atenção. Nesta embrulhada estão envolvidos a Notária, que fez o testamento; o advogado que, provavelmente, aconselhou o advogado que defendeu a tese da viabilidade dos legados; o juiz da primeira instância que considerou viável o testamento; a Relação do Porto e o Supremo. Isto é, houve pessoas que erraram em todo este processo, se tivermos por boa a decisão do Supremo. Mas, mesmo que não a consideremos, há gente que errou, fez uma má interpretação do direito. É este o encanto do direito e o seu perigo.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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