Para não esquecer...

CINCO PASSOS

I
O meu quarto tem cinco passos
Como os passos de uma cela
Mas não a de uma prisão
A de um mosteiro
Onde eu me recolhi por vontade própria.
A minha vida é em verdade muito simples
Quando a noite enfim me cansa
Durmo
E depois como
E aí o dia me consome
E então como
E depois durmo
A folga.
São muito simples os meus dias
Curtos
A vida em mim cumula os danos
E eu desabafo os meus lamentos
Ou toco modas de embalar
Crianças.
Às vezes vou ao pátio do convento
E fico olhando o ar
E o espaço que o ar preenche
Vem um passarinho esvoaçando
Que bate no telhado do alpendre
Não sei se é um pássaro ou um insecto
Os insectos aqui podem ser enormes
E há pássaros incrivelmente pequenos
Do que resulta uma dúvida
Mas ela também fica no espaço
E eu regresso
Regresso para a clausura
Da minha vã meditação.
A porta do quarto está fechada
Está quase sempre fechada
Pela determinação do ar condicionado
Mas nos dias em que chove
E a temperatura do ar fica agradável
E o ar livre
Eu gozo a felicidade de ter uma janela
Uma janela aberta que me alarga
Mas mesmo quando a janela está fechada
Outra perdura
E essa graças a deus nunca se fecha.
Passei o dia em casa praticando o monastério
Como outros e tantos dias que passei
Em que dedicado esse mistério pratiquei
Fiz tudo o que eu tinha para fazer
Incluindo algumas coisas que não fiz
Fi-las só mentalmente
Porque também
O meu monastério é mental.
De todas as coisas que eu possa fazer
E das que faço
Das que eu concluo
E das que permanecem em aberto
Ou definitivamente inconcluídas
Fica-me um gozo
Uma alegria triste de possuir aquilo
Acabado
Mas ter terminado a viagem de o fazer
Possuídas só porque posso ir lá e mudar uma letra
Ou uma palavra
Mas definitivas e estáticas
E não minhas
Na sua vocação de eternidade.
Tudo o que acontece no meu quarto
Ou fica dentro dele
Ou passa por uma frincha muito estreita
Que se abre na exaustão da paciência
Vai para fora como os pensamentos dos desenhos animados
Associados aos vapores eléctricos
Que se misturam entre a consciência
E o calor laborioso do computador.
Mesmo que eu ficasse todo o dia
Fritando os fusíveis com acontecimentos inexistentes
Com imagens decalcadas da minha própria mente
Mesmo que eu não escrevesse nada
Mesmo que eu não pensasse
As ideias continuariam saindo de mim
Como os cheiros e os pensamentos dos desenhos animados
Talvez então brancas luminosas e vazias.
É uma alegria branda o que eu sinto
Por perceber que ainda não morri
Mas isso é bem de ver só acontece
Porque uma ou outra vez já pensei nisso
Que um dia certamente vou morrer
E que fatalmente no dia em que isso acontecer
Será o dia em que eu terei morrido.
Não penso muito nisso
Mas também não procuro afastar de mim essa ideia
Sinto afinal uma estranha espécie de ternura por ela
Branda mas ainda assim emotiva
Para que espécie de quarto irei depois?
Em que espécie de poemas pensarei
Mesmo que os já não escreva
Ou mesmo que os nem pense
Mesmo que os só sinta
Ou que os nem sinta
Sim
O mais provável é que depois
Eu já não sinta nada
E como tudo parece sugerir
Já não exista nada
Nem mesmo eu.
Aí então um estranho pensamento me corrói
Quando ou pela hora ou do cansaço
Preciso desligar o computador
Reparo que quando dele a luz se apaga
Por um pequeno ápice depois
Que eu emiti a ordem para o desligar
E mesmo depois que ele já está desligado
Mas ainda não se apagou
Às vezes por um tempo mais que um ápice
Ele diz que está a encerrar
Mas mesmo depois que ele se apaga
Percebo pelo som de um barulhinho residual
Um subtil ruidozinho elétrico
Que ele ainda está a terminar de desligar
São cerca de dez segundos
Às vezes doze
Mas para quem espera o momento
De se reiniciar
Certamente valerá por toda uma inteira eternidade.
Não é que eu pense nisso a toda a hora
É mais quando desligo o computador
E mesmo assim nem sempre
Só raramente
Tem muita coisa aqui que me distrai
Muita natureza muita vegetação
Árvores grandes e outras árvores mais pequenas
Na base da maior e cujas folhas
Se ficam confundindo com as dela
Existem outras árvores mais pequenas
Arbustos e ervas quase imperceptíveis
Tem aquela folha mais tenra
Aquela folha mais jovem
Que de uma côr ainda não tão definida
Tem todavia um brilho
Tem uma luz que se irradia dela
Não é que ela pareça iluminada
A outra é que parece mais antiga
E embora mais consistente e mais substantiva
Plena de intenção clorofilina
É mais amorfa e mais tímida
Mais reservada
Executa mansamente a sua função
E mesmo que às vezes se deixe balançar no vento
É à outra que assiste o encantamento
Do dinamismo original do crescimento.
Essa é a folha da juventude
Que brande indiferente a sua ditadura.
Na árvore tem sempre muitas folhas
A não ser naquelas muito românticas
Quase despidas
Tem folhas de todo o tipo
Seja na árvore maior
Seja nas outras
É uma árvore grande
E as outras mais pequenas
São numa lógica viva e vegetal
Seus sucedâneos
Mas nesta árvore que eu vejo
Em que estaciono e penso
E tento ver outras coisas
P'ra lá do que está à vista
Não vejo o tronco
Encoberto pelas árvores mais pequenas
Árvores subsidiárias
Da maior
Que crescem à sua sombra
E em certos enquadramentos
Ou certas formas de ver
Sob a sua protecção.
Noutra árvore mais além
Vê-se já folhas mais lentas
Como uma árvore da vida
Que nunca morre
Mas se até as estrelas morrem
Os mundos os universos
Oblíquos dos pensamentos
Das conjecturas do caos
Porque não então também
Haveriam de morrer
As árvores?
Morrem algumas e outras quase mortas
Ficam cantando
Versos de poetas quiçá ultra-românticos
E vão secando
Quebrando os ramos
De alguma inquirição psiquiátrica
E é então
Que alguma estranha loucura
As redime
E as transforma em petróleo.
Nessas folhas amarelas
Que desmancham p'ra castanho
Os seus antigos fulgores
Se repete a mesma sina
Num dia rebentos frágeis
Noutro dia árvores inteiras
De folhas de várias lidas
E no fim por desconsolo
Mas grande fermentação
Folhas caídas.
Na frente da minha casa
Tem uma árvore redonda
Não sei se é árvore da vida
Se é a do bem e do mal
Mas uma coisa é cabal
É uma árvore velha
Situada e que cresceu
No centro do paraíso.
Na sombra que a árvore dá
Vejo a forma de uma mancha
Que me chama para lá
Mas fico olhando a paisagem
E a imagem não está lá
Está oculta na distância
Que entre mim e ela há.
Vejo que a vida é assim
Como uma árvore frondosa
Com folhas de muitas cores
Todas na idade certa
E a vida seguindo o rumo
Que as raízes também vão
Que a semente anunciou
Chegando em profundas grutas
Ou em altas circunstâncias
Sempre procurando a luz
E no fundo a água viva
Segue a sua vida longa
Fica lá por muito tempo
E de uma certa maneira
Nunca morre.
Todas as minhas idades
São como folhas de erva
Nas bermas da estrada larga
Como de mim a canção
Conta em outra incarnação
Fugazes folhas de erva
Penduradas numa árvore
Que a vida dá impressão
De ser eterna
São como a alta montanha
São como os bichos do mato
Que as minhas memórias contam
As que tenho e as que esqueci
As que sonhei ou vivi
E se incorporam.
É nessa sombra que fico e me detenho
No que será aquela estranha mancha
Escura e vazia
Mas de repente iluminada e flamejante
Olho-a por vezes longamente
Mas nunca consigo definir o que é
É uma mancha de sombra
Na sombra
Mas que arde uma nuvem fria
Mas flamejante
E é na intenção com que arde
Que de repente
Se torna quente
Às vezes incandescente
E que me atrai.
As coisas que eu faço
Se é que as faço
Já não são feitas num caderno
Instrumento passivo que embora arcaico
Possui o seu encanto
Faço-as num computador
Utensílio com o qual
Construí também um laço
Como que de afecto
E continuidade.
Faço também outras coisas com certeza
Toco viola ou divago
Em melodias simples que eu acho bonitas
Faço a cama canto salmos
E rezo
Faço às vezes o almoço
Ou o jantar
Faço castelos no ar
Lendo ou sonhando
Mas as que verdadeiramente me fascinam
São aquelas que são feitas
Nos momentos em que eu não faço nada.
Dizem que o Mário morreu
Pavão jovem
Dizem que morreu
De arsenicato
Dizem que de estriquinina
Para roer a indolência
Da esfíngica liqüidescência.
Má língua sabe-se lá
Se sombras
Se ditos de desditas nunca ditas
Malditas
Ditas de sexualidades
Incumpridas.
Morreu jovem o pobre Mário
E era um pavão altivo
Maior do que a própria sombra
Morreu ele de si mesmo
E da sua própria morte
P'ra ser eterno
E era tão jovem e belo.
Eu que agora já sou velho
E cheguei até aqui
Talvez porque em tantos dias
Não pensei em me matar
Em cada dia morri
E continuo
Como se fosse uma esfinge magra
Que não sabe se está viva ou se está morta.
As coisas que eu nunca disse
Ou que disse sem pensar
Como eu sempre digo tudo
Talvez seja por achar
Que coisas que eu dissesse
Sem pensar
Fossem afinal mais verdadeiras
Que as pensadas mas não escritas
Que eu me esqueci de pensar.
No quarto
Onde eu passo muito tempo
Sentado a tocar viola ou lendo
Ou escrevendo
Para que a base da estrutura não me doa
Levanto-me e ando
Como se fosse a vítima de um crístico milagre
E então ando
Com as mãos levantadas para o alto
Como quem se rende a uma ameaça
De bala
Cinco passos para cá e cinco para lá
E para cá e para lá
Os cinco passos do meu quarto.
Lá fora no corredor
Dá para dar doze passos
Ou com uma pequena curva
Adentrando área da sala
Seguir até à parede
E fazer dezoito passos
De seguida
Mas isso porém só me acontece
Quando a porta está aberta
E a casa respira toda junta.
Ando no mundo a vagar
Para cá e para lá
Talvez em rigor devesse ser
Para lá e para cá
Mas saiu assim
E eu achei bom
Essa ambiguidade nas duas direcções
Afinal
Quando eu vou para lá
Uma parte de mim já está lá e que me chama
E então eu vou
Para a parte de mim que naquele momento é o cá.
Na consciência do mundo
Vagando entre cá e lá
Vejo um sentido profundo
Talvez por fim cá e lá
Lá e cá todos os sítios
Sejam o mesmo lugar.
Nesse mundo tem o chão
E em cima do chão a casa
Na casa tem o meu quarto
E no quarto cinco passos
E nesses passos que dou
Vou sempre p'rò mesmo quarto
O quarto da minha casa
Onde eu oro o monastério
Que me faz mover-se o chão
Sempre p'ra lá da viagem.
II

Chove
Tem um urubu pousado
No alto de um poste eléctrico
Parece um ídolo
Uma imagem misteriosa e sagrada
De um ídolo negro
Soberbo mas não tétrico.
É a chuva
Que lhe dá a altivez
A chuva a que ele parece
Ser indiferente
Mesmo porque se não estivesse a chover
Ele jamais estaria ali
Nunca tão quieto
Nunca tão afirmativo
Nessa negra silhueta
Nesse absoluto imóvel
Forma pura de um contorno
Altivo e transcendental.
O tempo fica ventoso
Quando chove na floresta
Vem uma névoa fresquinha
Feita de gotas pequenas
Pequeníssimas
Mas que aos olhos parecem invisíveis
Visíveis só no entre
Do próximo distante intermitente.
Esse urubu fica ali
Pelo menos quando chove
Não vai p'ra nenhum buraco
Fica no alto do poste
Esperando que deixe de chover.
Mas depois quando faz sol
Mais vezes se é de manhã
Aparece o colibri
Que vem p'ra chupar as flores
Mesmo as que são muito pequenas
Como ele
Pequeníssimo também
É um pássaro extraordinário
Pára no ar
E bate as asas a um ritmo invisível
Imóvel porque as asas não se vêem
Para chupar à vontade
Dizem que beija mas chupa
O néctar
Da flôr
Quando voa
Numa direcção precisa
É incrivelmente veloz
E nessa dança de ritmos
Tão diferentes e ímpares
Parece ter um diálogo
Com o urubu.
Tudo isto vai e volta
Às vezes a chuva cai
Tem até a tempestade
Ribombarda trovoada
E árvores caem.
Quando o clima faz bom tempo
E o tempo fica mais lento
E uma brisazinha morna
Cria no ar um lamento
A minha saudade implora
Ao tempo uma nuvem mais
No dia que já se vai.
Hoje vi um colibri pousado
Nunca tinha visto um colibri pousado
Estava ali naquelas flores
Onde sempre o frenesi
Das suas asas ligeiras
Me encantam e impressionam
Não estava chupando as flores
Estava pousado num ramo
Depois em um outro ramo
Não sei
Talvez por as flores serem muito pequenas
E ele já ter chupado tudo de manhã
Talvez por ser fim do dia
Ficou lá um bocadinho
E depois já foi embora.
São os pássaros da minha vida
Um febril e juvenil
Outro altivo e compactado
Na chuva no céu cinzento
Imóvel de si ao tempo.
Nos lugares onde vivi
E às vezes volto a viver
Tem os outros passarinhos
Rabo-ruivos pintassilgos
Pardais e abelharucos
Andorinhas e cegonhas
Que são aves como eu
De arribação.
Ainda no outro dia
Estando eu a varrer o pátio
Com os meus olhos de vassoura de piaçá
Um enorme gato preto
Com ar de animal selvagem
Estava emboscado numas abas de piteira
Espiando dois passarinhos
Crias ainda pequenas
Como são ainda sem penas
As crias do sabiá.
Eis que aparecem voando
Volteando a meia altura
Batendo muito com as asas
A ponto de nem se verem
Bem de frente para o gato
Dois pequenos colibris.
O salto foi instantâneo
A decisão imprevista
De um salto paradoxal
De mais de um metro de altura
Bem um metro e meio talvez
O gato atacou feroz
Num gesto tão eloquente
Que deixou o colibri
O que lhe estava mais próximo
A um palmo de distância.
Foi uma decisão súbita
Desistiu dos passarinhos
Por outros que esvoaçando
E bastante mais pequenos
Que as próprias crias peladas
Estavam na frente da pita
Onde o gato
Preto e de cauda peluda
Estava emboscado esperando.
Haveria desta história
Mesmo o gato sendo preto
E a cauda sendo peluda
E o ar de animal selvagem
Alguma moral da história
Certamente que haveria
Se eu a quisesse inventar
Mas às vezes desta vida
A única moral que existe
É não ter moral nenhuma.
Os colibris lá fugiram
Sobreviveram
Já o mesmo não se diz
Dos pequenos passarinhos
Os pequenos sabiás
Assim que ganharam penas
E procuraram voar
Foram comidos
Não por aquele gato preto
Com ar de animal selvagem
De rabo peludo e sem moral
Mas pela mãe
Desse mesmo gato
Uma gatinha dengosa
Que nunca tinha feito mal a uma mosca.
E morreram
Esses dois passarinhos que nunca chegaram a voar.
Os gatos bastantes vezes
Matam não para comer
Mas p'ra brincar
É um jogo
Ou um entretenimento
Passarinhos e lagartos
Dos pequenos
Porque os grandes afinal
Não são para brincadeiras
Esses matam bicharocos
Para comer
E de todas estas coisas
Uma verdade respiga
Morrem as coisas na vida
Os tomates as alfaces
E há quem diga que até quando
Uma pessoa respira
O ar morre.
No outro dia senti
Uma impressão leve no ventre
E sacudi
Não sei se era um insecto
Ou só um grão de poeira
Nem sei mesmo se o matei
Mas pensei nisso
Como aqueles indianos
Os sadhus
Que têm o compromisso
De nunca matar ninguém
E andam nus varrendo o chão
Para que nenhum insecto
Que eles pudessem pisar
Seja morto à sua passagem.
É uma cândida prescrição
Própria de uma religião
E de uma tradição
Toda ela espiritual
Como se diz
E quanto se avalia
Ser a dos indianos.
Mas quando a morte se morre
Seja insecto ou animal
Mamífero réptil ou peixe
Mesmo as formas mais pequenas
Amebas protozoários
Fora de água ou afogados
Humanos e animais
Seres que vivem em geral
Por cruel que possa ser
Para os próprios ou seus próximos
Um dia morrem
E dentro de pouco tempo
Deles não resta mais nada
Primeiro os aromas bons
Depois os tecidos moles
Por fim células moléculas
Se separam
E afinal tudo regressa
Ao sempre eterno padrão
O passo é por um momento
De uma abjecta podridão
Mas logo a lógica pura
E a clareza da razão
Percebem a natureza
Do que chamei de padrão
Um princípio de fatal
Necessária e permanente
Total recomposição
Nada é permanecendo
Nem a arte nem a vida
Permanecem muito tempo
Só a ideia é eterna
E essa é feita de nascer
Tem um princípio que nasce
E que é feito de morrer.
Nesta cultura em que vivo
Gostam de enterrar os mortos
Fazem uma cova no chão
Com uma medida certa
E a pessoa fica lá a apodrecer
Ou o que resta da pessoa
Dentro de uma caixa
Uma caixa grande a que chamam caixão
Até ficarem só os ossos e os cabelos
E as unhas
Que ao que parece continuam crescendo
Mesmo depois de a pessoa já estar lá dentro
Até ficarem só os ossos
E as unhas
E os cabelos
E aí um dia desenterram-nos
E transferem tudo para uma caixa mais pequena.
Às vezes morre muita gente ao mesmo tempo
Como nas epidemias
Que sempre tem havido muito grandes
Como a da gripe espanhola
Que matou muitos artistas
E também outras pessoas.
Nessas alturas fazem um grande buraco
Chamado vala comum
E deitam p’ra lá os corpos
Despejam-lhes cal por cima
E então todos se misturam
E todos apodrecem igualmente
Ainda que em outra altura
Pudessem ter sido diferentes
Uns dos outros.
Pensa-se que essas diferenças
Se mantém
Mesmo se já se morreu
Porque uns irão p’ra jazigos
Outros para uma campa rasa
Umas mais humildes
Outras mais arranjadinhas
Outras gavetas aéreas
Derivadas das catacumbas
Mas isso não interessa nada
Porque aí já se morreu
E na morte
Somos todos realmente
Transcendentalmente iguais.
Na índia assam-nos em grandes piras
Construídas de madeira
Que navegam por um rio
E modernamente então
No ocidente
Incineram-nos em fornos
Como esses em que os nazis
Costumavam desfazer-se
Dos cadáveres dos judeus
E dos outros infelizes
Que eles haviam matado.
Uma vez estando em São Paulo
De passagem
E descendo estremunhado
Ao rés-do-chão do hotel
Entrei no elevador
E à medida que descia
Não tendo p’ra onde olhar
Reparei numa plaquinha
Da marca da companhia
Que o teria fabricado
Devia ser alemã
A companhia
Que ao que parece os fazia
Esses mesmo em que eu descia
Certamente esses e outros
E outras coisas de metal
Indústria em que como se sabe
Os alemães são altamente especializados
Schindler
Que era o nome de um senhor
Que salvou muitos judeus
De morrer
E pensei nesses judeus
Nos outros
Que morreram todos juntos
Todos enfileiradinhos
Envenenados pensando
Que estavam indo dar banho
E então desfalecidos
Zelosamente levados
Para os fornos que indiferentes
Os transformaram em fumo.
No tempo da inquisição
Queimavam-nos logo em vida
Mas tem modos de morrer
Em que se morre de gosto
Vai-se ao alto da montanha
E espera-se a morte lá
Ou como fazem no Tibete
Levam o morto para o alto de um penhasco
E esperam que os abutres o venham devorar.
Rituais fúnebres
Crenças eternas
Tudo afinal
Quando afinal já se morreu
E os sentimentos funéreos
As ânsias de eternidade
Já se esfumaram
E no eterno jamais
Já se dissolveram.
Há quem diga que ao morrer-se
A vida roda p’ra trás
Desbobinando a bobine
Do filme que a vida é
Sendo assim o ser que morre
Escoado afinal o tempo
Que se demora a morrer
Encontraria o momento
Aquele exacto momento
Em que nasceu
E os seus últimos suspiros
Seriam do tempo bom
Em que se foi pequenino.
Doce consolo
Tanto mais que com o tempo
Vai-se perdendo a lembrança
Do mesmo que se sentia
Quando se era criança.
Eu tive um amigo um dia
Africano de nascença
Com quem convivia muito
Embora por pouco tempo
Com quem fui um dia à praia
Eu ele e duas garotas
E nos meandros do encanto
Da paixão e do delírio
Dei comigo a fazer covas
Na areia
Eu e ele em frente a mim
Até encontrarmos um do outro
As mãos e rirmos felizes
E infantis.
Nunca mais senti assim
E o meu amigo de então
De quem eu gostava tanto
Voltou para Cabo-Verde
E eu nunca mais o vi.
Foi com ele que aprendi
Que aos africanos é dado
Serem p’ra sempre crianças
Podem ser já Preto-Velhos
Mas por alguma magia
Toda sim particular
Conseguem permanecer
Ligados ao sempre ser
Dessa criança imortal
Que nós nunca conseguimos
Por fim aprender a ser.
Mas nesse eterno aprender
É que me detenho e penso
Quando penso enternecido
No dia em que irei morrer
Numa distante fragrância
Numa infantil inocência
Algo mais do que uma flor
No azul imaculado da distância.

III
Eu vivo na floresta
À beira de um rio que corre
Corre manso como eu
Nem se vê a correnteza
Mas corre
Vivo no passo e no tempo
Dessa correnteza mansa
E um dia vou morrer
Como o rio que de tão largo
Tão imenso tão espalhado
Não se percebe que corre
Mas mansamente a seu tempo
Quando o momento chegar
De encontrar outra maré
Mesmo parecendo lento
Chega no fim do trajecto
E desagua no mar.
Nem sempre vivi aqui
'inda me lembro do tempo
Em que passava parado
Sem tempo nem pensamento
Fechado indagando audácias
Na penumbra do meu quarto
E do que eu via animado
Onde não havia nada.
Tentei em vão aprender
Dessas coisas o sentido
Talvez para saber como sorrir
Entender a existência
Proclamar outras passagens
Indagar por entre as sombras
Quiçá p’ra tirar férias de existir
E não pensar
No inabsolvível dever
De comer da amarga broa até ao fim
E de assim poder dizer
O que me parecia ser
A evidência do não
Dizer não por uma vez
Ao que pareceria óbvio dizer sim.
Nunca se aprende nada infelizmente
Só o que já antes se sabia
Mas não se queria aceitar ou compreender
Em todo o caso sei que um dia morrerei
E esse dia vai acontecer
E eu estarei presente
Despedir-me-ei da vida
Como quem deixa um palácio
Olhando o chão e as paredes
Dando adeus p'rò pessoal
Cada pessoa
Cada ser
Que ali se faça presente
E quando isso acontecer
Cá estaremos para ver
Como quem foi ao cinema
E dormiu durante o filme
Só acordando afinal
Quando as letras do final
Apareceram na tela
E as luzes da sala escura
Se acenderam.
Não é de hoje que desconfio
De que isso pode ser
Uma metáfora boa
Do que pode acontecer
Que todas as sensações
As lástimas o prazer
Todas as implicações
Do que poderia ser
Uma vida bem vivida
Fossem afinal imagens
Projectadas numa tela
Por um mecanismo oculto
Uma máquina invisível
Sonhadas só p’ra consumo
De um fantástico momento
Que é eternamente agora
E mesmo sem pensar nisso
Seja esse momento activo
O que nos faz respirar.
Sinto-me o ar preencher
Com o ar que me preenche
Sinto-me o peito crescer
As arcadas das costelas
As fibras reconstruídas
E mesmo quando me esqueço
Uma força em mim me obriga
A voltar a respirar
No fundo isso é por que sei
Ou porque o meu corpo sabe
Que no dia em que eu parar
Terei morrido.
Tenho uns amigos que dizem
Quando alguém morre
Olha «deixou de fumar»
E eu fumo mais um cigarro
Mas não deixo de fumar
Parece que o cidadão
Compra a morte em cigarrinhos
Mas vivendo
Vou levando o respirar
À última respiração
E a sanha continua
Até eu não respirar.
Às vezes minha mulher
Faz-me a pergunta retórica
Para que tomo eu os comprimidos
Se depois fumo cigarros
E eu às vezes penso nisso
Dá-me uma espécie de medo
De morrer
E penso que talvez fosse
Melhor deixar de fumar
Mas penso nos meus amigos
No que costumam dizer
De quem morre
E deixo de pensar nisso
P'ra pensar em outras coisas
E penso ruim será
Quando eu deixar de pensar.
Quando penso nessas coisas
Sinto em mim bater-se um ritmo
Um ritmo que bem conheço
É o da passagem do tempo
Do tempo que em mim se escoa
Onde eu sinto o batimento
De uma ideia muito boa
Em que nenhum pensamento
Nenhum soluço engolido
Nenhuma música soa
Só o eco de um momento
Total e descontraído
Em que eu já não sinta nada
E em que já terei morrido.
Gostava de ter sido pianista
Tocar emotivamente
Os nocturnos do Chopin
Baladas do Debussy
Mastigado o Czerny
Ter tocado inteiro o Cravo Bem Temperado
As invenções a três vozes
Quem sabe sorte e trabalho
Me levassem a tocar
As coisas mirabolantes
Como o Sviastolav Richter
Mas todas essas ideias
Que poderiam ter sido e nunca foram
Também irão ter morrido
Nesse dia em que eu morrer
E quem contará então
Quem as poderá ouvir
As histórias dessas coisas
Que de um modo ou de outro nunca
Jamais podiam ter sido?
Não as sei nem o indago
Que afinal não são diferentes
Das que eu fiz e por quem pago
O tributo de as ter feito
Mas essa colossal dívida
Terá expirado
No momento em que efectivo
Eu mesmo tenha morrido.
Penso nisso mas não minto
Também sinto e acredito
Que haja outra coisa qualquer
Faz tempo que penso nisto
Umas vezes por mania
Outras por intuição
Talvez fique algum registo
De toda essa confusão
Ideias subliminares
Pensamentos
Formas puras
Sentimentos intensivos
De intensas formas de vida
Talvez as grandes paixões
Não se dissolvam no tempo
E das emoções contidas
Nessa forma de viver
Talvez fique alguma coisa
Talvez se fixe por fim
Em algum registo akâshico
Como outros antes de mim
Já conceberam
O que aconteceu na vida.
Eu sou como um operário
Que cresce na construção
Se construindo a si mesmo
Vou construindo edifícios
Líquidos e imateriais
De beleza e ideologia
De fina tecnologia
De uma antiga construção
De um palácio de cristal
Que nunca foi construído.
É assim que a vida é
A de todas as pessoas
Ela vai-se construindo
Desde o princípio da vida
Acumulando experiências
Desenhando arquitecturas
De futuras construções
Subindo a escada da vida
Aduzindo as evidências
Para novos patamares
Vai-se ganhando no tempo
Mais altura
Mais visão e atitude
Olhando a paisagem longe
Reforçando os alicerces
Tijolo sobre tijolo
Aumentando a construção
E depois de alguns andares
Quando o prédio está de pé
Preparado para a festa
Dos últimos acabamentos
Descobre-se que a construção
Bonita de construir
Bonita de ver de fora
Ou de qualquer perspectiva
Por que se queira enxergar
Foi feita e pouco mais tarde
Um momento mais à frente
Irá ficar concluída
E será então perfeita
De beleza imaculada
P'ra não morar lá ninguém.
Já pensei juntar dinheiro
P’ra me mandarem cremar
E no caso de eu morrer
E isso acontecerá
O meu corpo não ficar
No chão a apodrecer
Mas pensando melhor nisso
Até isso eu acho em vão
E prefiro deixar aos vivos
O embaraço da escolha
Ou o diminuto consolo
Da decisão.
Os que me conhecem certamente terão pena
Os mais queridos e os que me querem chorarão
E passados alguns dias
Já tudo terá passado
Lançarão as minhas cinzas
Em algum lugar sagrado
Na natureza na vida
No mar sei lá ou então
Guardarão numa caixinha
Para poderem ficar
De recordação
E em nada disso eu terei
Já qualquer opinião
Não será da minha conta
E é mesmo melhor que não
Porque se fosse
O mais certo é que eu dissesse
Ainda não.
Actualmente tem no mundo
O ritmo da pandemia
Toda a gente anda assustada
E com medo de morrer
Mas eu ponho em perspectiva
A que me permite ver
As coisas que eu já pensava
Antes de haver pandemia
E vejo que mesmo um dia
Que virá mais uma vez
A própria espécie humana
Virá a desaparecer
Não quero ser tolerante
A ideias decadentes
Haveremos de morrer
E quem sabe nos profundos
Recantos das florestas
Pequenos grupos virão
A formar remanescentes
Que serão
As formas principiantes
De uma nova humanidade
Que nada recordará
Só por lendas ou visões
Das grandes tribulações
Que esta que actualmente vive
Suportou
E em que um dia fatalmente
Virá a desaparecer.
Será então um só corpo
Composto de muitos seres
De muitas cores e prazeres
E hábitos peculiares
Que como todas as coisas
Que são vivas
Algum dia irá morrer
Por ter ficado doente
Ou ter sido vitimada
Por algum órgão que tenha
Deixado de funcionar.
Como um dia já senti
Sinto-me então irmanado
Com esse destino enfim
De sermos todos um só
E as sensações que sentimos
As emoções as ideias
De todas as criaturas
Que sentem pensam e são
Sejam todas uma esfera
Como aprendemos na escola
Que existem a biosfera
A litosfera geológica
A atmosfera aérea
Na esfera que todos somos
E nessa ideia geral
Sinto um sentido comum
O de sermos afinal
Tudo o que existiu existe
Existe ou existirá
Num grãozinho de poeira
No cosmos universal
No tudo em tudo total
Que o Pessoa definiu
E nos é de utilidade
Todo o ser todo o não ser
Que existe no ser que é
Desde o sopro inicial
Até ao suspiro exangue
Que soltamos no final
Tudo total.
Percebo que quando quero
Falar do que me segreda
Aquele instante fatal
Me fogem os pensamentos
E só me fica uma ideia
Que é toda transcendental
A de que não há instante
Todo o instante é só um
Que se desloca no tempo
E que o tempo é um instante
Relativo
A outro tempo maior
E esse a outro e o outro a outro
Que não cabe na distância
E então vejo sem ânsia
Que o momento de morrer
É aquele em que aprender
A voltar a ser criança.
Quando às vezes delirando
Vejo coisas que não há
Pressinto uma nuvem lá
Onde o tempo vem chegando
E a curva dobra o destino.
Não é porque vá chover
Ou o tempo esteja embrulhado
É porque um alerta vindo
Uma clareira se abrindo
No céu que ali se faz claro
Me vem dizer que estou indo.
Lá vejo uma cova aberta
De dez palmos escancarados
Onde possa caber eu
A minha nuvem doirada
E ainda mal-ajeitada
A ponta da minha asa.
Vejo uma cova que arde
Como uma pira indiana
Em frente da minha casa.
Quando saiu o último poema de um muito amado poeta
Que diz «A Morte sem Mestre»
Pensei
Para que preciso eu de um mestre
Se a morte não me incomoda
Incomoda-me é a vida
A vida sem analgésico
Mas a vida segue vaga
Com ou sem
Serena ou não
E tudo o que o tempo apaga
O pensamento não erra
A consciência é que não
E entre um e outra divaga
A eterna interrogação
Posso morrer descansado?
Será a vida só isto?
E a morte com ou sem mestre
É que é a mestra da vida.
escrito por Joaquim Morgado

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