Na minha aldeia havia uma personagem incontornável: o Vivaldo Catraia. Quem não o conhecia?! Da idade do meu pai, tinha andado com ele na escola. Eu teria para aí oito ou nove anos e ele dizia-me “sabes, Carlinhos, andei com o teu pai na escola, na segunda classe. Ele passou para a terceira, e eu voltei à primeira”. Tratávamo-nos por tu. De mim era uma ousadia, mas tão natural que nem me dava conta do abuso.
O Vivaldo tinha duas paixões: a música e a dança. Andava sempre com o seu rádio Siera, com um som espetacular. Levava seis pilhas, mas havia sempre escassez de caixa para repô-las. Era o melhor rádio da freguesia. De resto, haveria muito poucos na altura. Tinha pelo rádio um amor muito grande. De vez em quando dizia “oh Carlinhos, vê lá se me arranjas duas pilhas, mesmo sem carga nas outras, isto funciona”. Eu, claro, roubava duas pilhas e dava ao Vivaldo.
Ele ambicionava colocar o rádio no cimo da Igreja para dar música à aldeia toda. Música de qualidade, claro. Conseguia sintonizar, se não estou em erro, o Rádio Clube Português e os Emissores Reunidos de Lisboa.
Acho que a mãe se chamava Almerinda e viviam no largo, frente à Igreja. A mãe, gritava-lhe “Vivaldo” e ele respondia “vou já Almerinda”.
Dançar nos bailes era a grande paixão do Vivaldo. Elegante, de fato “de dois fios, se puxar por uma linha desfaz-se todo”, dizia ele. De cabelo encaracolado, simpático, afável, com cerca de um metro e setenta. Nunca o ouvi levantar a voz. Falava quase de sussurro. O Vivaldo era um romântico. Estava sempre a pedir-me se lhe arranjava o only you dos Platters. Tinha um problema físico que ele disfarçava. Tal como a Sissy, a austríaca, ele tinha os dentes podres. Então não abria a boca, sorria, mas de boca fechada.
O Vivaldo corria os bailes todos, de Loulé, os famosos bailes no Celeiro, até Mértola. Claro, de bicicleta a pedal. A Mértola são cerca de 200 kms, ida e volta. Era preciso militância…
Um dia, anunciou-se na aldeia que o Vivaldo ia dançar essa noite yé-yé, o twist, na Sociedade Recreativa. O pessoal estava desejando. Aquilo não só era novidade como um certo arrojo. E naquela noite, com a sala só para ele e o seu par, lá se dançou o twist. O pessoal delirou. O par era a Anabela Encarnação, a minha vizinha da frente.
Um dia, em Loulé, o Vivaldo foi a um baile. Disse-me que era num primeiro andar. Às tantas, e como era habitual, veio a música das tabletes. Aquilo era simples. Os organizadores, para conseguir um pouco mais de caixa, convidavam o homem a oferecer um chocolate (alguns, mais abonados, ofereciam mais de um) à rapariga com quem dançava. Não era obrigatório, mas era uma forma de mostrar a simpatia pelo par. E havia noites de mais de uma vez. O Vivaldo, claro, foi abordado. Aí, o meu Vivaldo saca da carteira, vazia, e pergunta ao homem se tem troco de 50 escudos. Claro que o homem não tinha, mais sabia ele. O Vivaldo disse-lhe “um momento, que vou trocar”. Deixou a moça no meio do baile, desalvorou porta fora... e dizia-me ele “oh abre, desci as escadas de três em três, só parei em Santo Estêvão”.
O Vivaldo teve algumas namoradas. Nesse tempo, namorava-se às quartas e sábados, depois do trabalho. Ainda não havia semana inglesa. “A velha” , como ele chamava à mãe da namorada, às tantas, dizia “Vivaldo, é tempo de ires, está-se a acabar o petróleo”. A mãe da namorada referia-se ao petróleo do candeeiro que iluminava a sala onde estavam. O Vivaldo não gostava daquilo. Queria estar mais tempo e a “velha” não o deixava. Um dia, a “velha” achou que já era tempo de o Vivaldo se ir embora, mas o petróleo estava longe de chegar ao fim. Mais tarde, o Vivaldo explicou. “A velha punha o petróleo à conta para eu não estar muito tempo com a filha. Mas fodi a velha. Levei uma garrafinha com petróleo e, quando ela não estava na sala, ia despejando no candeeiro. Se se descuida, passava lá a noite”.
Não me lembro de o Vivaldo trabalhar com grande regularidade. A família tinha um pouco de terra, com algum rendimento de alfarrobas, amêndoas e azeitonas, mas pouco. Um dia, porém, foi trabalhar, no campo, com o Joaquim Estêvão (Rico). Foram de carroça. No regresso, o Joaquim Estêvão não encontrou o Vivaldo para o trazer de volta. Lá veio o homem sozinho. No caminho, veio fazendo contas à vida, ao mesmo tempo que perguntava intrigado “onde se teria metido aquele moço”. Trazia uma carrada de feno para os animais. As pulgas ou raio o que era não o largavam. Davam-lhe valentes ferroadas nas pernas. Lá veio, lamuriando-se e coçando-se o caminho todo. Ao chegar, desengatou a mula e levantou a carroça para despejar o feno. Nessa altura saltou, o Vivaldo de dentro do feno. Vivaldo que tinha escutado os desabafos do Joaquim Estêvão e tinha sido as “pulgas” que lhe morderam no caminho…
O Vivaldo, nos anos sessenta, foi trabalhar na construção das Pedras D´El Rei. Claro, como servente de pedreiro. O encarregado achou estranho ver o Vivaldo sempre entre o monte de brita e o de areia, com dois baldes na mão. Há dias que o via assim. Nessa altura, havia muita gente a trabalhar na construção e um trabalhador podia passar despercebido. O encarregado dirigiu-se ao Vivaldo para ver o que ele transportava nos baldes. Mandou-o parar e pediu para lhe mostrar. Os baldes estavam vazios. O Vivaldo andava naquilo há semanas…
O nosso artista tinha uma florett da Kreidler, uma motorizada alemã só acessível a pessoas com posses. Era uma motorizada mais cara do que as outras e só era vendida a pronto. Acho que a motorizada do Vivaldo era de segunda mão. A Almerinda deveria ter entrado “com algum”. O Vivaldo foi trabalhar para o Eurotel, na construção do hotel. Às tantas, o Vivaldo sobe a rampa de acesso ao primeiro andar de motorizada e os dois baldes de massa no guiador. Os pedreiros ficaram admirados. “O que é isso, Vivaldo?”. “Tempos modernos, é tudo à base de máquinas”.
“O Vivaldo juntou-se com uma moça de Santa Catarina”, soou. “Então, Vivaldo, juntaste-te com uma gaja?”. “Veio à experiência, se não servir, devolvo-a”. Quando vinha à aldeia comprar qualquer coisa, ao sair fazia um cavalinho e a mulher abria os braços. Dois malucos, dizia-se. Nunca a devolveu. Tiveram um filho. O Vivaldo ia para todo o lado com a mulher, até para lugares que ninguém esperava. Ao tempo, havia bares de alterne em Olhão. A prostituição era uma das famas de Olhão. Dizia-se “em Olhão, porta sim, porta não. Para baixo todas são”. Terra de pescadores, sei lá. Pois o Vivaldo levava a mulher para o Pescador ou a Romântica. Dizia onde se “acaba o dinheiro acabam-se os carinhos”, uma das máximas, certas, dele. Os amigos, ao vê-lo acompanhado da mulher, diziam-lhe “Vivaldo, tu trazes a tua mulher para aqui?”. “A minha, sei onde ela está, e tu sabes o que a tua está fazendo?”.
Depois do 25 de Abril, dizia-me sempre “Carlinhos, ainda havemos de viver bem, não achas?”.
Tinha o tique de arrastar os pés no chão, como as mulas. Ao ver uma mulher, que achasse jeitosa, dizia “viste aqueles bicos de mama?” e fechava o punho sobre o peito espetando o polegar a imitar o seio de uma mulher.
Por fim, trabalhava na Câmara, como cantoneiro, acho eu.
Num dia qualquer, na 125, a duzentos metros da minha casa, o Vivaldo, acompanhado da mulher e na sua Florett, ia para casa. No cruzamento da Fonte Salgada, ia entrar na 125. Era noite. Foi abalroado por um carro. Morreram os dois. Nunca lhe cheguei a dar a cassete com o only you…
escrito por Carlos M. E. Lopes
MEMÓRIAS SOLTAS * II. Vivaldo Catraia
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