Se eu tivesse que escolher, era sem dúvida o Joaquim da Quinta que eu escolheria como exemplo de galã. Filho do já aqui recordado Zé da Quinta, o Joaquim era a simpatia em pessoa. Afável, simpático, prestável, o meu amigo Joaquim morreu em 2019 com a idade de 94 anos (mais ano, menos ano). Sempre o conheci, mas foi em 1976 que passámos a conviver mais intimamente.
O Joaquim tinha sido carreiro, isto é, fazia fretes, transportando mercadorias, nos meios rurais, para os armazéns de Tavira. Geralmente alfarrobas e amêndoas, pois os agricultores muitas vezes nem carroças tinham para o transporte da sua produção.
O Joaquim fazia tal trabalho. Havia sempre desconfiados. Havia um, de cujo nome não me recordo, mas julgo ser Manuel, que desconfiava sobremaneira. O Joaquim pensou: vou enganar este gajo. Um dia chegou ao pé do homem e disse “Sr. Manel, desculpe, mas o senhor enganou-se no peso”. “Bom, bom, que foi rapaz?” o senhor mandou duas arrobas a mais”. “Oh moço, como foi isso?”. “Não sei, sr. Manel, mas a verdade é que iam duas arrobas a mais. Está aqui a conta”. “Obrigado, moço. Como foi isto, caramba”, desabafava o homem. Mais tarde, o Joaquim informou o homem “Sr. Manel desta vez houve outro engano, iam quatro arrobas a menos”. “Oh, moço, como foi isto. Está bem. Devo ter-me enganado”. Claro que o peso estava certo das duas vezes…
O Joaquim levantava-se cedo, tomava sempre banho de água fria, de inverno saltava debaixo do chuveiro, mas não abdicava. Bem cedo, saía à rua, e esperava a camioneta da serra. Às oito, estava ele à espera da camioneta do Mercador onde vinham as pessoas vender ovos, galinhas, galos, verduras e tudo o que produziam. Se combinássemos, o Joaquim comprava uma galinha, viva, ia pô-la no Tio Cota, na Rua da Asseca, e, com antecedência, marcávamos um petisco para a tarde de sexta. O galináceo repousava na capoeira do Ti Cota, era degolado no próprio dia, comia-se guisado e, no fim, uma massinha no caldo. Uma delícia.
Um dia, vínhamos da Praça, ainda eram nove horas, nós íamos a subir a Rua da Liberdade e uma senhora, velhota, vinha a descer. O Joaquim levava um saco de caracóis que tinha comprado. A velhota viu e perguntou “Sr. Joaquim, a como comprou os caracóis?” “a oitenta, minha senhora”. ”Onde?”, ”na praça” “Obrigada”. “Esta hoje não compra caracóis” “então porquê, Joaquim?” “o mais barato que consegui foi a cento e vinte…Há de ajustar e ninguém lhe vai vender por esse preço…”
O Joaquim, depois de carreiro, trabalhou na máquina debulhadora do Grémio e no Pagapouco (o serrenho). Conhecia bem a serra e os seus habitantes. Por fim, montou a sua própria sapataria, na Rua da Liberdade, em Tavira. Aí e a partir de setembro de 1976 passámos a conviver diariamente. Eu tinha a livraria Nova Aurora, no outro lado da rua, ligeiramente abaixo. Eu fumava e, quando abria a livraria, invariavelmente fumava e dava-me vontade de ir à casa de banho. Ia à porta, levantava a mão e o Joaquim já sabia que tinha que vigiar a entrada de alguém, pois eu recolhia-me…
À uma hora, íamos almoçar. “vou pedir a cabeça ao Janeiro”. A cabeça era o capacete para podermos ir, na minha motorizada, até à Fabrica, em Cacela Velha, à Rampa ou a outro sítio. Como bom homem do campo, dizia-me “no verão, Carlinhos, nunca da estrada para baixo”. A estrada era a 125.
À segunda-feira, todos os meses, havia mercado em Tavira. O pessoal do campo vinha ao mercado e muitos iam comer ao Simão, na estrada da Asseca. Traziam a comida e mandavam vir o vinho. Nós íamos comer peixe grelhado. O Joaquim, quando via algum casal da serra, dizia “queres presunto e pão esquivo?”. O pão esquivo era o pão caseiro. O Joaquim levantava-se, levava o prato de peixe grelhado e pão industrial, chegava ao pé da mesa dos vizinhos e dizia “vocês estão fartos disso (o presunto) e não apanham disto (o peixe) nem pão padeiro. Troquem connosco”. E lá vinha ele com o um bocado de presunto da serra algarvia, com o pão caseiro e, por vezes, azeitonas do pessoal.
Um dia, fomos almoçar a Faz Fato com a família. Levámos peixe e íamos fisgados no pão esquivo. Deixámos o pessoal na taberna e metemo-nos a caminho à procura do pão. Sempre que víamos fumo, farejávamos. Voltámos duas horas depois de termos encontrado uma matança de porco de onde não nos queriam deixar partir.
O Joaquim abria o estabelecimento mais cedo que a concorrência. Fui à loja dele e ele disse-me “Carlinhos, ia perdendo dinheiro no negócio, hoje”. “Então porquê, Sr. Joaquim?”. “Apareceu-me agora um serrenho que me pediu o preço dos sapatos. Eu disse que era 70 escudos. Mas eu sabia que era a primeira loja que ele visitava e não iria comprar logo, antes de visitar as outras lojas. Claro, correu as lojas todas e não encontrou mais barato. O preço era 110. Voltou, disse-lhe que já os tinha vendido. Hoje não compra sapatos, mas eu também não perco dinheiro. Os sapatos tinham-me custado mais de 70 escudos”.
Um dia, entro na loja e estava ele à conversa com uma mulher acompanhada de uma rapariga de quinze ou dezasseis anos. Dizia ele “não pode ser que a menina já tenha uma filha deste tamanho”, “tenho, tenho, olhe aqui está o bilhete de identidade dela, já tem dezasseis”. O Joaquim pegou no bilhete de identidade, olhou, virou-se para mim e disse “Carlinhos, vê lá, eu não trouxe os óculos hoje”. Conferi. A menina tinha razão quanto à idade da filha e o Joaquim não sabia ler.
Meu grande Joaquim! Havia tanto para dizer dessa alma enorme, dessa simpatia, disponibilidade e charme…mas fico-me por aqui.
escrito por Carlos M. E. Lopes
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