Para não esquecer...

MEMÓRIAS SOLTAS * XXII. o Ernesto abstémio

O meu pai contava, sabendo o que dizia.

Ernesto era um pacato cidadão da minha aldeia, melhor, da minha freguesia. Vivia no campo, com uma tira de terra onde semeava alguns alqueires, tinha meia dúzia de oliveiras, uma dúzia de alfarrobeiras, tantas outras figueiras e outras tantas amendoeiras. Coisa magra, mas que lhe permitia ser proprietário. A vida era passada com dificuldades inerentes aos proventos, mas que lhe permitiam alguns devaneios de homem do campo. A sua Leopoldina lá cirandava, em casa, fazia a comida, o pão, costurava, gostava do seu Ernesto. Ernesto que, à falta de meios para custear a boda, havia “fugido” com a Leopoldina numa sexta à tarde, já lá iam quinze anos. O pai dera-lhe aquela courela, como filho único, e o pai da Leopoldina, passada a zanga, contribuíra com algum dinheiro. O casal viva bem com os homens e com Deus.

Aos domingos, o Ernesto e a Leopoldina iam à missa, ministrada pelo padre Arsénio Águas, que vinha da Luz de Tavira. Nada faria prever que algo perturbasse a vida de um casal normal, numa freguesia normal, com uma vida normal.

O Ernesto lá ia à aldeia aos funerais, como era hábito, no seu fato escuro, camisa branca e gravata cinzenta. Fato que haveria de levar quando morresse. E nesse fato, com gravata com nó feito no dia do casamento pelo Justo, o alfaiate da Luz, ia ao mercado de Tavira todos os meses.

Havia uma coisa de que a Leopoldina não gostava. Sempre que o Ernesto ia ao Mercado, a Tavira, o Ernesto regressava bêbado. Isso não podia ser. Aquela atração por baco, ela haveria de  lhe pôr cobro. 

Um dia, a Leopoldina pensou e fez. "Hoje vou com ele e nunca o hei de largar. Hoje não irá beber". E assim fez. A Leopoldina andou de braço dado com o seu Ernesto durante todo o mercado. A coisa prometia e o Ernesto não bebeu uma gota de qualquer bebida durante o mercado. Mas o Ernesto… chegou a casa bêbado. A Leopoldina nada disse. Aguardou pelo outro dia, pois o Ernesto não estava em condições.

No outro dia, a Leopoldina perguntou “oh Ernesto, ontem andaste sempre comigo e, quando chegaste a casa, estavas bêbado. O que se passou?”. O Ernesto foi sincero e disse: “mas não viste quantas vezes fui mijar?”.

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