Para não esquecer...

ANTOLOGIA POÉTICA * 28

CIV
A ALMA DO VINHO

Certa noite, a alma do vinho fez-se ouvir
Nas garrafas: «Homem, por ti, ó deserdado,
Na minha prisão de vidro e lacres vermelhos,
Entoo um canto de luz e fraternidade!

«Bem sei o que custou, sobre a coluna em chamas,
De dor, de suor e de sol excruciante
Para engendrar a minha vida e dar-me a alma;
Mas não serei ingrato nem malevolente,

«Pois sinto uma imensa alegria quando caio
Na garganta de quem trabalhou todo o dia,
E o seu cálido peito é um doce sepulcro
Muito mais aprazível do que as cabe frias.

«Não ouves retumbar os refrões dos domingos
E o trilo da esperança no meu seio arfante?
Cotovelos na mesa e a manga arregaçada,
Tu me glorificarás, contente da vida;

«Acenderei o olhar à tua esposa ardente;
Ao teu filho devolverei a forçsa e a cor
E serei para o frágil atleta da vida
O óleo que enrija o músculo ao lutador.

« Em ti cairei, ambrosia vegetal,
Grão lançado pelo enterno semeador,
Para que do nosso amor nasça a poesia,
Que irromperá para Deus como rara flor!»

[Baudelaire, Charles. As Flores do Mal, Relógio D´Água, Lisboa, 2020, p. 233. ]

escrito por Carlos M. E. Lopes

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