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MEMÓRIAS SOLTAS * XXIV. Cinema Palhinha

Era um acontecimento. Ao domingo, de tempos a tempos, havia cinema na aldeia. O salão era o armazém do Zé Vitorino, à curva, à esquerda, na descida de Santo Estêvão em direção a Tavira. Foi nesse armazém, onde se guardavam alfarrobas, havia barris, fardos de palha, uma vaca e um burro que vi, me emocionei, chorei e ri a ver cinema. As Pupilas do Senhor Reitor, Cantiflas, Joselito, Camões… eu sei lá o que vi… 

Ao entrar, havia a máquina de projetar. O gerador estava na rua. Ainda não havia luz elétrica. À esquerda, o ecrã, por cima do monte de alfarrobas. As primeiras filas eram bancos corridos, para os moços. A seguir, cadeiras com costas, para as mulheres. À direita, quando se entrava, havia umas manjedouras com o burro e a vaca, na parede, de frente para a parede de projeção, uns fardos de palha, em escadinha, que serviam de bancos para os homens. A disposição era semelhante à da igreja. Os moços à frente, as mulheres a seguir e os homens cá atrás. Os homens geralmente estavam alheados do filme, fumavam em cima dos fardos e bebiam aguardente de figo. De chapéu na cabeça, habitualmente.

O filme desenrolava-se -- e lembro-me dos choros, com baba e ranho, no filme Camões e, sobretudo, no filme La Novia, em que António Prieto nos fez chorar desalmadamente. O empresário, por vezes, prestava-se à explicação do enredo. “Então o rapaz encontra a rapariga e vê-se logo que gostou dela e…”

Nunca os meus pais foram comigo ao cinema. Durante a tarde, uma carrinha com altifalante percorria a freguesia a avisar o pessoal de que iria haver cinema. À noite, eu ia com o Fernando Brito. A maior ambição era poder ir para os fardos de palha, estar ao pé dos homens. Com alguma luta, lá conseguia. A moça que mais chorava era a Anabela Encarnação.

Depois, bom... depois era subir aquela estrada, uns trezentos ou quatrocentos metros até chegar à aldeia e a casa, encostado ao Fernando, e deitar-me. Os sapatos estavam cheios de palha. Espalhavam-se pela cama, com colchão também de palha. O mesmo se passava com quem em cima dos fardos tinha estado. 

O Fernando Brito, claro, com o espírito que o caracterizava, batizou “O Cinema Palhinha”. Ficou na memória. Inesquecível.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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