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MEMÓRIAS SOLTAS * XXV. O "Luta Popular"

Ninguém podia duvidar do empenho nosso em fazer a revolução e da convicção em que a Revolução deveria avançar a todo o vapor. Mudar a vida e a sociedade era a nossa missão, empenho, desejo. Entregamo-nos a esse objetivo com o empenho que os vinte e poucos anos permitem. O Partido precisava de nós e o nosso desejo é que a coisa não falhasse por nossa causa. Não havia outra vida nem desejo. O Partido acima e antes de tudo. Havia que deixar tudo e todos, afazeres profissionais e quaisquer outras tarefas. Esse era o grande objetivo: manter vivo o único jornal marxista-leninista-maoista da Europa capitalista. A coisa não estava fácil.

Lisboa convocou-nos para uma reunião sobre o assunto, para nos fazer ver a importância da tarefa. Do Algarve fomos três: o Quim, o Alberto e eu. Um de Faro, outro de Loulé e outro de Tavira

[os locais e nomes, à exceção do meu, são fictícios, até porque as figuras envolvidas desempenham cargos políticos importantes ou são intelectuais de referência e podem não querer recordar um passado que eventualmente tenham repudiado].

Saímos do Algarve no comboio da noite, o correio. Chegámos a Lisboa bem cedo. Galgámos, a patas, até à Avenida Álvares Cabral. Aí estivemos em reunião, a manhã toda. Ao almoço, subimos até ao jardim da Estrela (já sem leão) e banqueteámo-nos com um lauto almoço: uma bola de Berlim e muita água da bica disponível. A ideia era fazer crer que o estômago estava cheio. 

Continuámos à tarde. Voltámos no correio. Mas o regresso não foi pacífico nem calmo. A partir de certa altura, o camarada de Loulé começou a meter-se na casa de banho ou fingia dormir no lugar destinado às bagagens. E, apesar de intransigentes defensores da classe operária e dos trabalhadores, o camarada louletano evitava o revisor. A razão era simples. No Terreiro do Paço, o camarada, honesto, em vez de pedir bilhete para Loulé, pediu um bilhete de cento e vinte escudos, que era o dinheiro de que dispunha. O bilhete só dava para pouco mais de metade da viagem, daí em diante havia que evitar o revisor.

O camarada Alberto chegou ao destino, sem problemas, mas não conseguimos impedir que o Luta Popular deixasse de ser diário.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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