Para não esquecer...

28
ago
2023

MEMÓRIAS SOLTAS * XXXII. O juiz

Havia o hábito nas feiras, mercados e festas, no Algarve do sotavento pelo menos, do jogo do “gaitinha”. Tal jogo consistia num dado que, sacudido num copo, era lançado e destapado. Em frente havia um retângulo com os números de um a seis, em duas filas, de um a três e de quatro a seis. Os homens da banca jogavam o dado. Se saísse o número onde o amigo apostasse, ganharia 5 vezes o que tinha apostado. Daí que, o banqueiro anunciasse, “com cinco, vinte cinco”. O jogo era clandestino, ainda que, às vezes, obtivessem uma licença, na GNR, para jogar. Como se sabe, o Estado sempre gostou de ser o maior batoteiro…

No fim do estágio, fui chamado pelo amigo Cansado, escrivão do Tribunal de Tavira, para defender, oficiosamente, um cidadão que tinha sido apanhado com a banca do gaitinha numa festa.

Dirigi-me ao tribunal e aí deparei-me com o cabo Sol. Disse-lhe que precisava de falar com o arguido em privado, pois ele não poderia ouvir a conversa. O cabo Sol, com a delicadeza que se lhe reconhecia, disse-me "E a segurança”? Eu retorqui “o problema é seu, eu posso falar em privado com o arguido".

Lá falei com o homem e ele disse-me que estava a ver o jogo do gaitinha e que, de repente, aparecem dois guardas à civil. Os outros fugiram, mas ele ficou. Eu aconselhei o homem a contar isso na audiência.

Ao ouvir os garbosos soldados do GNR, eles disseram que há muito perseguiam o arguido e que, nesse dia, foram à civil, e apanharam-no em flagrante, com a banca.

Eu, perante os depoimentos dos GNR fiquei convencido de que os soldados estavam a dizer a verdade.

Nas alegações finais, como é hábito e nada havia a dizer, pedi justiça.

Foi aí que eu conheci um juiz (AA, assim se chamava), que perguntou ao último GNR “quanto apreenderam ao arguido?” Aí o GNR balbuciou “200 escudos”.

Sentença do meritíssimo: “Absolvido! Com 200 escudos não se joga à batota”.

O juiz era batoteiro.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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