Para não esquecer...

Subtexto e falácia ad hominem

1.
Quando falamos ou escrevemos, construimos um texto. Construimo-lo num determinado contexto

(contexto é a relação entre o texto e a situação em que ele ocorre: a época histórica, cultural ou de qualquer outra índole em que o texto e o próprio autor se enquadram)
-- ou, mais bem dito, em determinados contextos. Chamo subtexto
(um termo influenciado pelo subconsciente da Psicanálise)
a um outro nível do texto: o nível daquilo que o texto diz implicitamente (isto é, aquilo que o texto diz sem que o autor tenha disso necessariamente consciência).

Seja o exemplo de um incidente entre Sócrates, o actual primeiro ministro, e José Tavares (JT), ex-coordenador do Plano Tecnológico do governo de Sócrates. Passaram-se as coisas numa conferência da Economist, após um discurso de Sócrates.

Cito o Público: "Na fase de perguntas e respostas do discurso de José Sócrates, José Tavares levantou-se, apresentou-se como professor da Universidade Nova e ex-coordenador do Plano Tecnológico e interrogou o primeiro-ministro sobre um "projecto charneira" do Plano: o MIT Portugal. 'O Presidente do MIT [Massachusetts Institute of Technology] já disse ao Governo português que está disposto a avançar. É um projecto que envolve um investimento de 50 milhões de euros, quatro quilómetros de TGV, que pode ser co-financiado a 50 por cento pela União Europeia', disse Tavares, acrescentando que há 'um ministro' que está 'pessoalmente contra o projecto'.
'O projecto está na sua mesa', disse Tavares. 'Vai avançar ou não?'".

O subtexto da resposta de Sócrates é significativo: "O projecto MIT será decidido pelo Governo e não por nenhum funcionário público". Assim subtextualmente se confirma o que já sabíamos: a arrogância deste "nosso" primeiro; e a ideia negativa que Sócrates tem dos funcionários públicos. Só faltou que tivesse dito expressamente (tê-lo-á pensado?) "...e não por nenhum reles funcionário público".

2.
A telenovela MIT seguiu com outros episódios.
Supõe-se que o referido ministro-anti-MIT será Mariano Gago (MG). MG garantiu entretanto que as afirmações de JT não merecem qualquer credibilidade... e argumenta falaciosamente: usa a conhecida falácia ad hominem.

Argumentar ad hominem consiste em atacar uma pessoa em vez dos argumentos/ideias que ela defende. Fê-lo em tempos, por exemplo, Santana Lopes (se é verdade o que então se disse), quando sugeriu a homossexualidade de Sócrates para tentar evitar que chegasse a primeiro-ministro
(na verdade, verificámos já que as opções do primeiro ministro são más, sejam quais forem as suas opções sexuais).
As ideias valem (ou não valem) por si, quero dizer, independentemente da cor da camisola que vista quem as defenda.

Voltemos à nossa novela. MG ataca JT (e não as suas "ideias") dizendo que este não deveria ter dito o que disse, por ser um funcionário português
(novamente o subtexto a provar que a imagem negativa que Sócrates tem dos funcionários portugueses é partilhada pelos seus ministros e que o governo "socialista" gostaria de ter funcionários públicos mais submissos)
e "professor em início de carreira"
(uma observação muito rica... subtextualmente, a insinuar até uma ameaça: professor em início de carreira não pode ser tão... explicitamente crítico. A menos que queira que a sua carreira fique pelo início).
De outro modo dito: ficamos sem saber se as críticas de JT são verdadeiras ou não. Sabemos (ou pretende-se que fiquemos a saber) é que JT, a pessoa, não tem perfil para... pessoa pública.

3.
Nota final: A falácia ad hominem é vício muito comum nas discussões entre os digníssimos habitantes diurnos da nossa Assembleia da República. Pelo menos a julgar por algumas que de vez em quando ouço na tv. Valha-nos Deus, se pode!

escrito por ai.valhamedeus (com um abraço ao Jerónimo, que me chamou a atenção para os factos)

1 comentário(s). Ler/reagir:

Anónimo disse...

As teias que um texto entretece.

José (Sócrates) tem desempenhado, em regime de exclusividade, a tarefa de irritar todos quantos se cruzam com as suas decisões.
Ao invés do seu homónimo grego, não dialoga e não tem dúvidas; não se acha filósofo, encontra-se deus.

José (Tavares), um modesto funcionário público (f.p.), deve ter sobrevoado (nos longuíssimos períodos de lazer), a mitologia grega, fruto de qualquer equívoca semelhança entre um Sócrates e o outro… Tendo que optar entre Sísifo e Prometeu, preferiu apropriar-se do fogo e atirar com a pedra, sob o olhar atento do Economist e, de todos nós!

José (Sócrates), que não calha ser filósofo, nem se lhe conhece qualquer outra actividade profissional, poderia ter representado Sísifo, era bonito… dava os primeiros passos, a sério, no teatro e todos (?) compreenderíamos a tragédia que um governante, por nós, experimenta. Mas não, qual deus irado no templo, disparou o que se conhece, nenhum f. p. (…)

Ora, o Sr. José (Sócrates), mesmo temporariamente e cada vez mais, também é um f.p. – por maior que seja o desprezo que o próprio nutre pela função – pago pelo dinheiro dos contribuintes e, nesse contexto, (ainda) nos deve, sobre esta matéria, uma explicação, seja ela qual for.

No palco do Mundo, como diria Shakespeare, outras personagens se apressam para entrar em cena e, Mariano, qual Demóstenes curado da gaguez, resolveu atirar achas para a fogueira: afinal, o José (Tavares) além de f.p, era também um professor em início de carreira. Propositadamente, ou não, o Mariano, que é ministro, resolveu elidir dois qualificativos de Tavares, o que por junto daria: jovem professor universitário, em início de carreira.

Com todo este cenário, além das explicações que não temos, ficamos à espera de conhecer o local exacto onde Prometeu irá ser (de novo) agrilhoado; com um tal plano tecnológico será que as vísceras do J.Tavares serão devoradas pela águia Vitória, ou farão outra, à medida, no Mit?

Certo é que, por mérito, J. Sócrates, não se livrando de ser um fp, jamais será um jovem professor universitário em início de carreira e tomado, não como um homem, mas como um pedaço de carácter, é um ser desprezível, arrastando consigo outros seres que, pela sua subserviência, são igualmente desprezíveis, tudo, por nossa conta.
jcosta