Para não esquecer...

POIS!... [estórias exemplares] -6-

MANUEL VENENO

Nunca averiguei donde lhe adveio o apodo de Veneno. Manuel, Manuel Veneno era o nome por que era conhecido. Talvez coisa de família
– também nas alcunhas há destas hereditariedades –,
pois que sujeito como aquele, mais incapaz de destilar peçonha, não conheci eu. Contínuo da Sociedade Recreativa Cacelense
– aí por quantos anos a fio? uns trinta, talvez quarenta…–,
envelheceu no cargo de guardião do prestigioso grémio, que sem tal zelador seria certo e seguro ter há muito ido de pantanas. Depois que os bailes caíram em desuso e todo o santo lar passou a dispor de aparelho de televisão, quedaram os batoteiros por quase exclusivos frequentadores. Chegavam depois da janta e ficavam até às tantas na jogatina, batendo a sueca, a copa, vá lá três setes. O Manuel abria a porta, despachava no bufete o seu cálice de bagaço ou a sua cervejinha com meia dúzia de alcagoitas a acompanhar, e varria, quando varria, o tabuado encardido. Fechava às horas que aos jogadores
– sempre os mesmos, e inveterados –
lhes dava na real gana. Apagava as luzes e ia-se deitar. A cama era a mesa grande do salão.

Pois o Manuel Veneno não tinha outra casa. A Sociedade Recreativa Cacelense era a sua madrigueira de bicho. Só dele? Aqui é que está o ponto. Dele e de uma inumerável legião de cães e gatos. Aqueles, os canídeos, se eram vadios tinham ali acolheita garantida. Rara a semana em que não se incorporava um recruta. “Está adido…”, dizia com genuína unção o Veneno enquanto o novo hóspede abanava o rabo e arreganhava o focinho, satisfeito com semelhante amo que não comia para dar de comer, num grande gamelo, à matilha sempre garganeira. A canzoada tomava posse do salão e demais dependências, alastrava-se para dormir valentes sonecas no meio do soalho e, com a maior das sem-cerimónias, deixava poias onde a necessidade instava; os jogadores, ou porque o cheirete fosse demais ou porque borrassem as botas, grunhiam: “Manéééli!...”. Acudia ele sem pressas; uma mancheia de serradura sobre o presente resolvia o problema.

A gataria, está sabido, era de outra ordem de asseio. Estorvava menos. Felídeos havia-os versicolores, pardos, negros retintos, amarelos e amarelados, às manchas. Acomodavam-se por tudo quanto era sítio, mesas, cadeiras, bancos, balcão; mais de um tinha por vezo subir para o ombro do dono e ali ficar especado, como se tal fosse. Extraordinária a cena com que me deparei quando, sendo da direcção e possuindo a chave da porta, entrei de imprevisto, seria por volta do meio-dia, e encontrei o Manuel Veneno ainda deitado. A mesa grande do salão, consoante ficou dito, era o seu regalado leito de penas. E mantas, senhores, e mantas, pois que era Inverno e o edifício gelado?!... Qual quê, as mantas eram os bichanos que lhe cobriam cada centímetro do corpo em decúbito dorsal; e como as barbaçanas hirsutas se confundissem com a pelagem dos gatos, só pelo ressonar
– pior que um serrote em madeira má –
me dei conta de que estava ali o canastro do Manuel Veneno, e respirava.

O seu ecuménico amor franciscano não se circunscrevia porém a cães e gatos. Todo o animalejo o propiciava. Uma vez lembrei-me que possuía uma espingarda de pressão de ar
– marca Diana –
há muito esquecida e sem serventia. E deu-me na telha ir atirar aos pardais para um terreno devoluto e coalhado de arvoredo, contíguo à sede da SRC. Já se vê que, caçador bisonho e canhestro, fartei-me de despedaçar ramos e furar o céu, mas a pardalada que inçava as frondes ficou-se a rir. “Piú-piú-piú-ih-ih-ih”, escarneciam, e nem se davam ao cuidado de levantar voo. Eis senão quando pressinto, poucos passos atrás, o vulto estatuificado do Manuel Veneno, olhos pávidos e muito esbugalhados, a esclerótica a dardejar ira. “Vossemecê não tem vergonha de andar a matar os pobres dos passarinhos?”, fulminou-me ele naquela sua voz encatarroada de mais de três maços de Três Vintes por dia.

Não tinha matado nenhum, mas fiquei transido. Escarmentado, retirei e logo nessa noite, à primeira oferta, vendi a carabina. Por mil paus para não ser de graça, quando valeria nem quero saber quantas vezes mais.

escrito por A.Rosa Mendes

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