Para não esquecer...

AIMÉ CÉSAIRE, UM VIZINHO DE TODA A VIDA

Quando nos anos sessenta pisei terras de África, levava na bagagem dois nomes que na minha juventude eram dignos de admiração e que pela minha ingenuidade viajavam a descoberto. Conhecia-os mal, mas já gostava deles. Da sua terra, só sabia o nome: Martinica. Eram eles Aimé Fernand David Césaire e Franz Fanon. Dois africanos movendo-se de exílio em exílio. Ambos nascidos nas caraíbas, numa ilha mais pequena que muitas machambas do seu continente de origem.

Li e reli as suas teses num ambiente ideal: uma colónia africana
[a que a metrópole chamava província ultramarina]
onde uma tal PIDE/DGS
[que obviamente só existia na minha imaginação]
se abespinhava com certos nomes e conceitos, de brancos ou de pretos, que sempre lhe cheiravam a comunismo.

Eram teses sobre africanos escritas na França por americanos
[porque, digam o que disserem, as Caraíbas estão na América]
nascidos numa colónia francesa que na altura ainda era só uma colónia comum.

Pretendia eu tirar algum proveito da semelhança das situações, mas rapidamente percebi que na minha colónia quase ninguém falava de negritude
[os poucos que o faziam eram tão brancos como eu e viviam mais ao Sul, a 2000 km de distância, na cosmopolita Lourenço Marques, de costas viradas para o resto da colónia, para o mato].
Uma dúzia de anos mais tarde, por obra de algum shetani maconde, fiz o percurso dos avós de Césaire e Fanon e acabei auto-exilado precisamente nas Caraíbas. E foi então que este neto de esclavagistas
[a literatura sociológica portuguesa prefere os portugueses que deram voltas ao mundo sempre com o Credo na boca e Deus no coração]
sentiu que coabitava com os netos dos escravos. Fechava-se assim um círculo.

A minha primeira visita à Martinica obrigou-me a uma viagem interior muito mais longa que a física, porque o tempo é mais difícil de percorrer que o espaço.

Nessa colónia glorificada pelos antigos negreiros como Departamento do Ultramar

[mudança que se deve precisamente à militância política de Césaire]

senti a presença desses dois colossos da negritude: Césaire e Fanon. O primeiro, ali tão perto e retirado; o segundo, morto e sepultado. Na azáfama diária da ilha, a negritude não vai mais além da cor de pele da quase totalidade dos seus habitantes e na pressão, tipo enxame, que exercem sobre o visitante para lhe arrancarem um par de... dólares
[moeda que circula em maiores quantidades que o euro].
Sentado num maltratado jardim de Fort-de-France, relembrei uma das últimas frases de Franz Fanon no seu livro «Os condenados da Terra» (1961):
«...se queremos que a humanidade avance com audácia,
se queremos elevá-la a um nível distinto daquele que impôs a Europa,
então há que inventar, há que descobrir
».
A maior invenção que vi foi o desproporcionado porto onde atracam os cruzeiros que formam um carrossel no mar das Caraíbas e à volta dos quais gira a vida toda do grande Departamento francês da Martinica.

Não descansará em paz Aimé Césaire porque há muito que descobrir para que os seus conterrâneos deixem de ser realmente os condenados da terra
[africana e americana].
No fundo senti uma grande emoção ao saber que naquela casa, a um par de metros, vivia o homem que levei na minha bagagem há muitos anos atrás. O homem que toda a vida foi meu vizinho. Au revoir, mon ami Aimé!

escrito por José Alberto, Porto Rico

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