[leia o capítulo anterior, se é necessário avivar a memória...]
De uma vida interrompida, quiçá.
-- Isto passou-se no Natal. Há muitos anos, era eu criança…
Apesar do sol, ela evocou os natais de outrora, pelos quais suspirava já em Agosto: a quentura da cozinha onde a Mãe preparava os mimos natalícios, o cheiro a filhós, a rabanadas. A aletria e o arroz doce a ganharem vida nas travessas enfeitadas com canela desenhando flores, corações. Os presentes modestos no sapato, para onde corríamos ao acordar, depois da espreitadela extasiada a descobrir a neve nos telhados caída na noite, no tempo do nosso sono imperturbado. O Augusto Gil deve ter tido um acordar assim.
Recordou o presépio feito com musgo verdadeiro que, com a ajuda dos irmãos, era arrancado às pedras generosas e transportado com mil cuidados, não fosse desfazer-se antes de ser colocado no recanto destinado a esse ritual que celebrávamos sem esforço. Não havia árvore de Natal, nem bolas douradas ou prateadas, estrela ou fitas a sobrecarregarem o pinheirinho colhido antes do tempo. Não tenho ideia de quando é que tal atentado à Natureza se foi subrepticiamente imiscuindo na tradição. As figuras do presépio eram simples e em maior ou menor número conforme o tamanho do rendimento familiar. Porém, havia sempre um rio de prata, sinuoso, longo como o Nilo, ou impetuoso e largo, dependendo das pedras que transmudávamos e do papel de prata que conseguíamos comprar “nas” VERITAS, a loja onde se adquiriam santinhos e santinhas, passando por livros escolares e artigos de papelaria. Havia de tudo relativo à Quadra. O lucro, creio, era distribuído por Instituições de Caridade, como se dizia. Sem problemas nem arrufos de consciência.
A voz dele despertou-a do périplo da memória:
-- Foi um caso muito falado. Uns disseram que a culpa foi do motorista do camião; outros culparam os pais da criança. Já se sabe: cada cabeça sua sentença!
Interrompeu-se, mais uma vez, para saudar um banhista que passava, corpo desnudado a aproveitar os últimos raios de sol, barriga proeminente a entornar-se dos calções curtos e justos.
-- Este é que teve sorte. Enricou com o turismo. Vá lá, não esqueceu os amigos. Mas quanto maior é a nau, maior é a tormenta… E já o meu contador de estórias se enredava, a propósito do homem que passava, numa estória de assalto à vivenda, na ausência do dono, em plena luz do dia, veja lá você, e com os vizinhos a assistir, pensando que ele se mudava para outras paragens, sem dar cavaco, num “não te metas na minha vida” que se não via noutros tempos. Valeu-lhe um amigo que, providencialmente, por ali passou, estranhando a carrinha, a azáfama da mudança intempestiva.
Ao abeirar-se dos laboriosos carregadores para indagar do sucesso, estes deram às-de-vila–diogo, arrancando num barulho atroador de aceleração instantânea e chiar de pneus, deixando para trás um rasto de fumo de escape, impedindo, assim, os basbaques de reagir e tomarem nota da matrícula .
-- São estes os tempos em que vivemos. No tempo do Salazar…
Não continuou a frase, por mor do olhar que ela lhe deitou e dispôs-se, por fim, a acabar a história.
[continua]
escrito por Gabriela Correia, Faro
3 comentário(s). Ler/reagir:
Vossa Excelência, ilustre professora Srª D. Gabriela Correia deve estar confundida com o tempo "do Salazar".
O mais certo é que isto se esteja a passar no tempo "da Ana Salazar"
Aqui pode informar-se melhor com o que se passava "no tempo "do" Salazar"
(Pela familariedade do trato devem ter sido companheiros de carteira"
http://www.esfcastro.pt:8079/users/franciscosilva/salazar.html
Ó, caro anónimo! deixe-se de familiaridades e vá mas é para os bancos da escola aprender a não dar erros.
Gabriela
P.S. Aposto que Vª EXª diz "no tempo do Dr. Oliveira Salazar" e faz a continência. Sabe, estas estórias não são para todos! Sabe a história do sapateiro e da chinela...?
ui ui ui ui ui essa doeu!
Afinal para quem são estas estórias?
Quem decide se estou acima ou abaixo da chinela? A escritora? O crítico? A censura? O sapateiro? O vendedor de chinelas?
J Alberto
P.S. Continuo a não entender a temperamental/visceral reacção de un anónimo, que diz chamar-se Gabriela, contra um anónimo que não diz como se chama. Seria diferente se esse anónimo dissesse que se chama Joana?
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