Para não esquecer...

DO CONTRA [39] interpretações

Depois de Maitê Proença, José Saramago decidiu incendiar Portugal. Só que o prémio Nobel, tendo atingido menos portugueses, atingiu mais alvos -- os católicos de toda a Terra; e os da Lua, onde provavelmente também haverá católicos -- quando declarou que
a Bíblia é um manual de maus costumes
[veja um vídeo com extracto das declarações].
Desta vez, Saramago tem razão. Só que a Igreja tem, contra ele, um argumento divinamente poderoso. Chamemos-lhe o argumento da interpretação, que é divinamente poderoso porque, quando aplicado a um texto
[no caso, aos textos bíblicos],
dá para tudo -- e, ao dar para tudo, anula qualquer hipótese de argumentação séria e impede quem quer que seja de ter razão em que circunstância for.

O argumento sintetiza-se assim, aplicado aos textos (pretensamente sagrados):
  • o que a Bíblia diz
[nalguns casos -- quais casos? isso é questão a decidir circunstancialmente]
não deve ser lido literalmente, mas interpretado;
  • o poder dessa interpretação -- e da mudança da interpretação -- tem o seu centro na cidade santa, o Vaticano.
A História provou já suficientemente que este argumento, além de divinamente poderoso, é divinamente maléfico, porque já forneceu fósforos para acender fogueiras para queimar hereges.

Seja, por hoje, um exemplo. O capítulo 10 do Livro de Josué
[um dos livros bíblicos, recordo eu, para que não haja dúvidas]
apresenta-nos um Josué chefe do povo de Deus que vence e destroça reis, com a ajuda super-poderosa do (seu) Deus: é Ele-Deus quem põe em desordem os inimigos
[que Israel "desbaratou com grande matança", diz a Bíblia],
é Ele quem depois lança do céu sobre os inimigos grandes pedregulhos
["e foram mais os que morreram das pedras da saraiva do que os que os filhos de Israel mataram à espada", diz a Bíblia],
é Ele quem finalmente manda parar o Sol e a Lua, para que o seu povo pudesse acabar definitivamente com os inimigos.

Esta coisa de Javé ter mandado parar o Sol
[e é a Bíblia, repito, que diz que foi assim. O Sol e a Lua]
foi entendida, durante séculos, pelos intérpretes oficiais assim mesmo, literalmente: o Sol anda porque só assim o Senhor Deus pôde fazê-lo parar até nova ordem. Quando, no século XVII, um senhor sem direitos de interpretação jurou
[antes de, sensatamente, jurar o contrário]
que o Sol não andava nada, que era preciso dar uma/outra interpretação ao texto bíblico, foi o cabo dos trabalhos: Galileu
[esse é o nome do tal senhor]
só não foi parar à fogueira
[que já se acendera para reduzir a cinzas as mentes heréticas de gente como Giordano Bruno]
pelas boas relações que tinha com a Sua Santidade (SS) da época. Mas, apesar de ter renegado a heresia, Galileu ficou em prisão domiciliária até à morte -- e foi bem feito para aprender que intérpretes da Palavra Divina há só uns: os donos do Vati-cano.

400 anos depois, os mesmo donos da Verdade Interpretada voltaram ao ofício interpretativo, desta vez para absolver Galileu; para dizer que afinal o cientista nunca foi condenado, porque SS da época nunca assinou a condenação
[o que prova que os intérpretes, além do mais, são cínicos];
para propor uma estátua, na cidade santa, do injustamente condenado; para lhe fazer exposições; ...só falta, mas talvez não tarde, que, um dia destes, o cientista de Pisa seja beatificado.

Não obstante, segundo os intérpretes, o texto bíblico continua válido; o que nele se pretende transmitir à humanidade é, segundo a nova interpretação, a ideia de que Deus é amigo do seu povo e está do seu lado, sempre que é necessário...

Agora pergunto eu: o que é que mudou para que mudasse a interpretação? Isto, apenas: já ninguém, hoje, vai nessa estória de o Sol andar -- e a estória bíblica é tão ridícula que há que tentar salvá-la pela (re)interpretação.

Segunda pergunta: quem garante que esta é a interpretação definitiva? ninguém. Nem Deus! Porque, afinal, nada disto é razoável. E, ao falar na falta de razoabilidade, Saramago tem toda a razão.

escrito por ai.valhamedeus

11 comentário(s). Ler/reagir:

Sapateiro de Trancojo disse...

E tu também tens razão.

O fariseu Saramago disse meia dúzia de disparates, tu, filósofo de Bijeu, dizes um quarteirão de asneiras, convencido que estás na lógica do teu raciocínio.

Os intérpretes da Bíblia são tão falíveis quanto os teus pensamentos dedutivos em sentido contrário.

Já, Zaratustra dizia: Humano errare est

Não era Zaratustra?
Se não era Zaratustra era um parente qualquer dele.

Mas claro, pelos vistos a ciência parou em Bijeu e só o que tu dizes é dogmático.

Tem um bom dia, sobretudo com saúde e não andes muito à chuva que te faz mal à moleirinha.

Anónimo disse...

Afinal o que é que mudou desde o tempo de Galileu e Giordano Bruno? Nada,o essencial mantém-se.
Óptima argumentação, e lúcida. Por que razão se indignam os portugueses, que nem a Bíblia conhecem? Muito longe disso.
Gabriela

Ai meu Deus disse...

Ó Sapateiro,

(tirando umas ou outras imprecisões) de facto, tu não consigo encontrar nenhuma asneira no que escreves e até compreendo: quem não diz nada não pode dizer asneiras. Mas ainda estás a tempo de dizer

1) quais são as asneiras que eu digo (e porque é que são asneiras). Não é preciso o quarteirão, bastam 3 ou 4;

2) quais são os meus pensamentos dedutivos (para ver se eu percebo o que é um pensamento dedutivo);

3) quais são "os vistos" que deixam ver que a ciência parou em Bijeu;

4) quais são "os vistos" que deixam ver que eu sou dogmático (para ver se eu percebo o que é ser dogmático).

Uma nota final: costumo andar à chuva; é que a chuva, não só não faz mal, como refresca a moleirinha (e, tal como outras coisas, a moleirinha tem que ser refrescada com alguma frequência).

freespirit disse...

Ao ler o comentário do sapateiro tive um deja vu. Parece que li mais ou menos as mesmas coisas que nos comentários a esta notícia no jornal Público.

Mas a geografia de facto ainda conta: é que de Roma vem a sabedoria; de Bijeu o palpite tosco e provinciano.

vitor m disse...

Os defensores do dogma bíblico definitivamente não aprendem com os erros que as suas e outras religiões têm cometido ao longo da História.
O erro, na sua essência, é este: não aceitar que todos têm o direito de desacreditar nas lenga-lengas deste ou doutros livros sagrados.
Um dia um tipo crente, referindo-se ao meu agnosticismo, disse que só os animais não tinham um deus. Respondi-lhe, "No comments"

Ai meu Deus disse...

Ó vitor m, aqui (digo eu) o assunto (de Saramago) nem é propriamente a crença/fé ou as lenga-lengas (porque há lenga-lengas interessantes, até na Bíblia); é a "maldade" que na Bíblia (sobretudo no Antigo testamento) se dá como exemplo.

Mesmo acreditando em Deus, não é razoável admitir que o Deus de muitas páginas da Bíblia (e do Corão -- mas estamos a falar da Bíblia) seja um Deus bom (e portanto Deus); porque é de facto MAU. Só a tal interpretação O salva (dizendo que o que se diz na Bíblia não é o que se deve ler); mas isto não é razoável para ninguém que seja honesto intelectualmente. Mas também de quem acredita que o vinho se transforma em sangue por palavras mágicas e a seguir o bebe como tal -- de tal gente tudo se pode esperar, incluindo a crença na bondade de um Deus mau.

Jeova disse...

Ó valha-me não sei quê...

O Deus mau está na tua cabeça

Contra isso nada nem ninguém pode fazer nada.

vitor m disse...

Ó Jeova, o deus bom está na tua cabeça, e contra isso nada se deve fazer, acho...
Enjoy! :-))

Jeova II disse...

E eu dou um rebuçado se alguem advinhar o que está na tua cabeça.
(na cabeça do vitor m, tá claro)

E fico por um rebuçado porque grande parte dos leitores acerta com a resposta.

E com a crise que por aí vai, não arrisco em prémio melhor

Ai meu Deus disse...

Sapateiro, Jeovás I e II (e os mais que se lhes juntem),

vamos lá ver se a gente se entende.

Cada qual pode pensar o que entende que deve pensar. Mas a grande diferença entre o texto que eu escrevi e os vossos comentários é que eu, além de dizer o que penso, digo as razões por que o penso. É possível, assim, avaliar se tenho razão ou não.

Mas essa avaliação faz-se discutindo ideias. Mandar "boutades" (em português, "bojardas" ;-)), em vez disso, além de fácil, é desonesto. Chamar nomes também não é difícil e não é mais honesto.

Neste texto, o meu "ponto" é este: quando, como faz a Igreja, se defende que o que a Bíblia diz tem que ser interpretado e depois se vão dando interpretações diversas ao longo dos séculos -- isto é uma postura que não é séria, porque não permite qualquer apreciação.

Se eu dissesse que "Cavaco Silva é um ignorante" mas depois acrescentasse que tem que se entender o que eu quis dizer com isto... especificando que afinal o homem é ignorante porque não sabe o que eu estou a fazer neste momento, ou qualquer "invenção" do género... bem... não sei que diriam...

Para reforçar o meu "ponto", dei o exemplo de Galileu e de um livro bíblico (hei-de dar outros). Tenho razão? não tenho ? porquê? -- estas são as questões. Atirar ao lado, repito, não é sério.

vitor m disse...

Jeova, há uma coisa que de certeza não está na minha cabeça - o teu deus bom ou o mau de Saramago.
O que tu pensas que eu lá tenho interessa-me tanto quanto o sexo dos anjos...
Embora não seja da tua conta, digo-te que tenho o maior respeito por (quaisquer) crentes, esperando deles a mesma postura.