Para não esquecer...

rapinados 20. O SANTO DOS PORRES

Pelo S. Martinho prova o teu vinho. Depois do Natal, a festa de S. Martinho é a mais comemorada em Portugal. Dia de grande porre nacional, pois é quando se prova o primeiro vinho da colheita anual. Um dos grandes mistérios da Igreja — para mim — é misturar o nome de S. Martinho de Tours com água-pé, castanhas e febras na brasa. Nada na vida do santo faz conotá-lo com comedorias e bebedorias. A sua história, não tem a ver com a tradição popular dessa época. Então, viva a tradição e vamos provar o vinho.


S. Martinho nasceu no ano de 315 ou 316 em Sabária da Panónia, actual Hungria, filho de pais pagãos. O pai era oficial do exército romano e foi destinado a Pavia, onde o filho recebeu a primeira educação.

«Aos dez anos» — escreve José Leite, S. J., in Santos de Cada Dia — «pediu para entrar na Igreja contra a vontade dos seus e pensava mesmo em retirar-se para o deserto. Para o libertar das influências cristãs, aos 15 anos o pai inscreveu-o no exército e obrigou-o ao juramento militar. Tratava o seu impedido em pé de igualdade, pois com ele comia, servia-o à mesa e até lhe limpava o calçado.» Baptizado aos 18 anos, foi logo ordenado como exorcista, por S. Hilário. Em Abril de 360 retira-se para um lugar chamado Ligugé, junto a Poitiers, onde construiu uma cabana e ali permanece 11 anos, entregue à oração e à penitência. Poucos anos antes de ser eleito bispo de Tours (contra a sua vontade), em 371, funda junto da cidade o mosteiro de Marmoutier, onde acolhe os primeiros discípulos. Dali saiu, entre outros, S. Patrício, o apóstolo da Irlanda. Marmoutier foi um grande centro de evangelização.

Considerado o pai do monaquismo francês, Martinho de Tours foi o grande introdutor do cristianismo na Gália romana. Na França há 485 aldeias e 3667 paróquias com o seu nome e a si devotadas. S. Martinho é padroeiro dos hoteleiros, cavaleiros e alfaiates; é invocado especialmente como protector dos gansos. Foi patrono da dinastia carolíngia. E em França, Inglaterra e Sacro Império foi santo muito popular devido às suas acções cavaleiresco-episcopais.

A sua fama de santidade nasce quando, sendo ainda catecúmeno, em Amiens, em pleno Inverno, de volta dum passeio matutino, um pobre, meio nu, estendeu-lhe a mão, pedindo esmola. Martinho tirou o manto militar, cortou-o ao meio com a espada e entregou metade ao mendigo. Críticos dessa meia-generosidade ironizaram o facto de ele não ter dado a capa inteira, talvez por ser Inverno... E aí outro «milagre» aconteceu em defesa do santo: a sua festa litúrgica, 11 de Novembro (embora tenha morrido no dia 8), costuma ser um belo dia de Verão — o Verão de S. Martinho.

A CONFUSÃO — Houve um outro S. Martinho, de Dume, natural da mesma Sabária da Panónia, dois séculos depois, que chegou a ser bispo de Braga, reputado como o homem mais ilustrado do seu tempo, tendo fundado no século VI o mosteiro de Dume, nos arredores de Braga, e tido como o grande convertor dos suevos para a religião católica.

Sobre S. Martinho de Dume escreveu Gregório de Tours, entre 591 a 594, contando mais um milagre do santo da Galícia: achava-se um dia o rei Miro na cidade em que seu sucessor tinha edificado a basílica de S. Martinho (de Dume), e em frente ao pórtico havia uma ramada de uvas, que o rei havia proibido que lhes tocassem, pois pertenciam ao santo. Como um servo desobedecesse e fosse colher um cacho, secou-se-lhe imediatamente a mão direita. Acudiu o rei e quis cortar-lha; atendendo, porém, aos rogos que lhe fizeram, voltou à igreja e foi chorar o delito do servo aos pés do altar. S. Martinho dignou-se curar o delinquente.

Devem ser essa «ramada e esse cacho de uvas» que fizeram ligar e confundir S. Martinho de Tours com o de Dume, transformando-o no santo do vinho.

Na minha opinião, quem deveria ser o santo protector do vinho é Martinho de Porres, nascido em 9 de Dezembro de 1579, em Lima, no Peru, e morto em 1639, a 3 de Novembro, dia em que é festejado. S. Martinho de Porres é padroeiro dos mulatos e é invocado para afugentar os ratos. Mas quando o leitor «amarrar» um porre, daqueles de trocar Jesus Cristo por Vitorino Nemésio, em vez do falso padroeiro do vinho, apegue-se ao santo peruano, ele deve ser do ramo. De porre ele entende.

[rapinado do jornal desportivo A Bola de 10/11/1994]

nota do Ai Jesus!: manteve-se o substantivo porre, em vez de o substituir por, mais utilizado no português europeu, bebedeira. Ou chiba. Ou cabra.

escrito por ai.valhamedeus

1 comentário(s). Ler/reagir:

Xico Almeida disse...

PORRE ....hoje, só se for com limoncello !