Para não esquecer...

ILUSTRAÇÕES... DE UM OUTRO SENTIR * 44

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UM RIO TE ESPERA
Estás só, e é de noite,
na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, ó abandonado. 
Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros noturnos. 
Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada em construir
pequenos ataúdes para o desejo,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas. 
Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te de tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria. 
Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
e outra vez a água; 
a água;
água ou bosque,
sombra pura
nos grandes dias de verão. 
Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.
 [Eugénio de Andrade]

foto, de ai.valhamedeus; escolha do poema, de Ana Paula Menezes.

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