Para não esquecer...

A FICHA

Sentado na sala, à mesa, deu-me a sensação de que uma ficha tinha ardido, ou começado a arder. Entre uma pequena mesa com a televisão e outra igual com alguns livros, junto ao chão, tenho uma extensão com cinco fichas e um emaranhado de fios. Entre tais mesas, uma cesta de vime com revistas. Dispus-me a ver o que se passava.

Pensei pôr-me de cócoras, mas as articulações não aguentaram. Rendi-me à impotência e coloquei-me de joelhos. Tirei a ficha que me pareceu ter dado sinais de avariada. Não vi nada. Ao tentar recolocá-la, não atinei com os buracos. Tirei as fichas uma a uma. Não vi qualquer vestígio de anomalia em nenhuma delas. O pior era voltar a metê-las nos buracos. Não conseguia. Afastei a cesta das revistas e deitei-me no chão, de forma a tentar ver os buracos das fichas, enfiando a cabeça entre as duas pequenas mesas. A muito custo e depois de algum tempo, lá consegui enfiar as fichas. Agora havia que me levantar. Agarrei-me ao sofá para tentar erguer o corpo e, depois, sustê-lo nas pernas. As pernas não aguentavam. O sofá era muito mole e não dava solidez à manobra. Olhei de lado e vi a cadeira onde tinha estado sentado. Era uma boa ideia tentar colocar os cotovelos sobre a cadeira e erguer o corpo. A cadeira estava um pouco afastada. Estendi a perna, fleti a perna e trouxe a cadeira até mim, arrastando-a. Apoiei o cotovelo esquerdo sobre o tampo da cadeira. Estava em cuecas. Entra um cão (coisa rara) na sala. Aproxima-se da minha perna, cheira, levanta a perna e urina sobre a mesma. O cheiro e aquele líquido quente sobre a perna desesperaram-me. Eu suava com o esforço. O cão, depois de eu ter chamado uma série de nomes a ele, à mãe dele e à dona dele, saiu.

Eu estava cansado. Tinham passado mais de dez minutos desde que eu tinha religado as tomadas. Fiz um último esforço. Consegui levantar um joelho. Agarrei-me com força à cadeira. Só já faltava a outra perna. Fechei os olhos, fiz um esforço tremendo, consegui levantar o outro joelho. Agarrei-me com mais força ao tampo da cadeira, ergui ligeiramente o corpo e… a cadeira tomba de costas e eu arrastado outra vez para o chão.

Recoloquei a cadeira de pé. Pensei que, desta vez, iria conseguir levantar-me, já tinha uma tática. Voltei a pôr o cotovelo esquerdo sobre o tampo. Acontece que as pernas estavam cruzadas, com a queda. Larguei a cadeira, deitei-me no chão ao comprido, descruzei as pernas. Voltei a colocar o cotovelo esquerdo no tampo. Suava abundantemente. Fiz novo esforço de levantar os joelhos. Os minutos passavam. Já tinha passado mais de meia hora que eu andava nestas manobras. Finalmente sentei-me na cadeira. Liguei a televisão. Uma menina estava a ensinar que a “idade está na cabeça”. Chega a família da piscina “olha o lorde, açafatado a ver televisão”. Nada disse, senti uma lágrima a sair do olho esquerdo. Limpei a cara com a mão, ri e disse “a idade é um posto”.

Um som de fritado veio da zona das fichas.

escrito por Carlos M. E. Lopes

1 comentário(s). Ler/reagir:

Elisio Cordeiro disse...

O que me ri, Carlos.Claro que a idade está na cabeça, o corpo é que não sabe.Na tropa dis-se que a velhice é um posto.