A minha avó paterna nasceu no século XIX. Tenho ideia dela baixa, de chapéu e sempre de preto vestida. Era pequenina, magra e muito mexida. Falava muito, não se calava. De resto aquilo deveria ser de família. Um irmão, o José (acho eu), foi um dia a Lisboa, andou de elétrico e, ao sair, já toda a gente sabia quem ele era, o que fazia e de onde vinha. Uns autênticos algarvios.
Ela chamava-se Maria da Conceição Estêvão. Teve três filhos, dois rapazes e uma rapariga. Como falava muito e tinha algum receio de apanhar sol, cumprimentava as pessoas, fazia as perguntas, dava as respostas e seguia o seu caminho. “Carlinhos, não te ponhas ao sol, és muito branquinho e o sol faz-te mal. O teu pai é diferente, é mais trigueirinho”. A minha mãe e a minha prima diziam que lhe queriam comprar uns patins para ela poder andar ainda mais depressa. Andava sempre a visitar amigas.
O meu avô, pelo contrário, era um homem sério, sisudo, calado. Já o conheci decrépito. Arrastava os pés e o cajado. Relativamente alto. Usava um bigode curto, tipo Fernando Pessoa. O meu avô trabalhava em carpintaria, mas fazia, sobretudo, caixões. “Oh, Carlinhos, se eu tivesse uma moeda de tostão por cada brocha que espetei nos caixões, eu era rica”. Na casa de jantar, pequena, entre a cozinha, o quintal e a sala, havia um armário, metido na parede onde repousava, pendurado num cabide, um fato preto, envolto num papel ou plástico. Eu perguntava “o que é isto?” A minha avó dizia “é o fato para vestir o teu avô no dia do enterro”. E foi.
Um dia, a minha avó ia sair e o meu avô perguntou-lhe “Sanita, onde vais?”. “Oh Joaquenito, quando vier já te digo. Estou a pensar ir a um lugar e se, por qualquer motivo, não for, minto-te. Quando voltar já sei onde estive, logo te digo”.
A minha avó tinha uma grande amiga, mãe do Zé Vitorino (não sei se alguma vez vi a senhora). A amiga morreu. Algum tempo depois, a minha avó dizia-me “aquilo não deve ser bom. Nós éramos muito amigas e tínhamos combinado que a primeira que morresse, se aquilo fosse bom, chamaria a outra. Ora ela morreu há tanto tempo... Se ainda não me chamou é porque aquilo não é bom”.
Com a morte do meu avô, a minha avó passou a andar a meses, na casa dos filhos. Um dia, no período do Natal, a minha tia, um pouco miserável, perguntou “mãe, quer uma fartura?” (fatias douradas ou rabanadas). Resposta repentista da minha avó Sanita “Fartura?! Só se for no nome”.
Deixou de visitar as amigas nos anos sessenta. Já não sei quando. Morreu suave, calou-se.
escrito por Carlos M. E. Lopes
MEMÓRIAS SOLTAS * III. a minha avó Sanita
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