Santo Estêvão caracteriza-se por ser uma freguesia rural, com uma zona urbana diminuta e casas espalhadas por diversos sítios. Tanto o pão como o leite eram distribuídos em pontos de encontro pela freguesia. As mulheres, ao fim do dia, esperavam em determinados pontos pelo leiteiro. Um desses pontos era junto à casa do Júlio Neves, carpinteiro, essencialmente de carroças (abegão).
À tardinha, ao lusco-fusco do dia, à conversa, as mulheres aguardavam o leiteiro. Lembro-me de ter havido uma mudança. O novo leiteiro era sui generis. Baixo, portador de uma unha no polegar, larga, não muito grande, mas albergando vários quilos de estrume, entre a unha e a carne. Homem do povo, ladino, desonesto, vivaz, o leiteiro era uma figura do fim do dia.
Ao despachar, tinha uma tática. Como era quase noite, não se viam as medidas. Então o leiteiro pegava na vasilha, perguntava à cliente quanto queria, metia o polegar na borda da vasilha e a mão e o resto dos dedos seguravam a leiteira da cliente. A vasilha que transportava estava atada à motorizada e tinha uma torneira. Abria a torneira, punha a vasilha da cliente por baixo. Baixava a vasilha do cliente, para a afastar da torneira e fazer espuma. Quando a espuma lhe batia no dedo, estava o leite servido e a medida certa.
Um dia, uma desabafou. “Comprei ontem, no Barqueira, uma chocolateira de litro e meio. O leiteiro despachou-me dois litros e não encheu…”.
A unha já não existe. O leiteiro, também não.
escrito por Carlos M. E. Lopes
MEMÓRIAS SOLTAS * IX. O Leiteiro
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