Para não esquecer...

MEMÓRIAS SOLTAS * XX. o suicídio da Maria

Maria é casada com Nic. Eu fui ao casamento, há talvez cinquenta anos. É um casal discreto, com duas filhas. Ela é de uma família da aldeia. Ele, pedreiro, vivia nas redondezas quando casou com a Maria.

Um dia, foi viver para perto do casal um outro casal que construiu a sua casa perto da casa da Maria e do Nic. Tal casal tinha uma filha muito bonita, vistosa, desempoeirada. Vivia por Lisboa. Era bailarina, livre, sem namorado sequer. Tinha uns olhos verdes deslumbrantes. As casas estavam separadas por uma estrada. O Nic começou a sentir alguma atração pela filha da vizinha. A filha começou a responder aos olhares lânguidos do vizinho dos pais com meios sorrisos. O Nic achou que era uma aceitação de corte. A vizinha, batida, brincou com Nic. Este não se apercebeu. Começou a sentir-se um galã de cinema. Passava muito tempo à porta de casa para poder vislumbrar a vizinha. Esta sorria-lhe e baixava a cabeça. Para Nic era uma aquiescência sem qualquer dúvida. O Nic começou a alardear entre os conhecidos que andava a “papar” a vizinha de Lisboa. A “coisa” foi-se espalhando, começou a ser falada na aldeia. Nic sentia-se confiante e audaz. Ajudava a vizinha a tirar as coisas do carro, quando ela chegava de Lisboa. Conversava, conversava. Sempre com um sorriso maroto no olhar. A vizinha gostava do jogo. Já espalhava as proezas que fazia por cima e por baixo. Umas orgias imaginativas.

Quem não gostou foi a mulher, a Maria, quando a mãe lhe confidenciou o que se falava pela aldeia. A Maria gostava do seu Nic, de quem tinha três filhos. O Nic mantinha-se irredutível nas suas proezas, surdo aos apelos da mulher. Queria lá saber! Aquilo era tão bom… Com quase cinquenta anos de casado o Nic, de repente, sentia-se audaz, com êxito em relação ao sexo feminino, capaz de proezas na alcova de envergonhar gente nova. Ainda por cima uma finória de Lisboa e uma artista. O Nic andava eufórico, sem reparar na tristeza da sua Maria. Queria lá saber! Aquilo era tão bom… sobretudo o êxito entre amigos e conhecidos. O Nic não reparou nas proporções que o caso estava a tomar e, nem sequer, via a tristeza, amargura e desespero da sua Maria.

Um dia, sem se esperar, a ambulância passou na aldeia em direção à casa de Nic. Que se passava? A Maria, desesperada, havia engolido uma caixa de comprimidos, para pôr termo à sua vida e não sofrer mais. Ambulância, mãe, pai, filhos, mesmo o seu Nic, causa daquele ato de desespero, vizinhos todos num alvoroço. “Esperemos que se salve”. Lá foi para o Hospital de Faro, mal, muito mal, entre a vida e a morte. Fizeram-lhe lavagem ao estômago, puseram-na a soro nos cuidados intensivos. Maria arrebitou, esteve lá dois ou três dias. Regressou amarelada, débil, fraca de pernas, com espasmos. Salvou-se. Dificilmente teria morrido daqueles comprimidos. Eram de vitamina C. Tão só.

Os vizinhos venderam a casa, a filha nunca mais apareceu a visitar o Nic, foi pregar a outra freguesia.  De todos os que ouviram as histórias do Nic, só duas pessoas acreditaram nelas: O Nic e a Maria. Ela agora tem-no de corda curta, ele, por outro lado, está velho.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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