Para não esquecer...

MEMÓRIAS SOLTAS * XXI. o meu tio Joaquim

O meu pai tinha dois irmãos. Um irmão, o Joaquim, e uma irmã, a Adília. O meu pai tratava os irmãos por você, não que fosse beto afetado de Cascais, mas porque era mais novo quase vinte anos do que eles. Os meus tios tinham uma filha cada. Eu era o único macho na família. O meu tio vivia a cinquenta metros da minha casa. Eu fui estudar para Faro, “passear os livros” como se referiam a quem estudava, na altura, com algum desdém. E o meu tio Joaquim, pelo Natal, fazia questão de esperar o fim de semana para combinar a matança do porco. A mim cabia-me puxar pelo rabo do bicho. Eram só homens. A minha prima Amélia não se aproximava e a minha tia Dionísia só aparava o sangue que comíamos cozido, com vinagre e salsa.

Combinada a matança com quinze dias de antecedência, num domingo, lá aparecia o matador, a princípio o marido da minha tia, o Macário, e depois o Leonor Cachopeiro, mais o Fernando Brito, eu e o meu tio. Mais tarde, juntou-se o marido da minha prima Amélia, genro do meu tio, que veio perturbar a minha qualidade de convidado especial. Mas, afinal, nada perturbou, continuei a ser fulcral naquela história.

De manhã juntávamo-nos na oficina do meu tio. Havia sempre uns fritos e aguardente de figo. O Leonel, figura principal da cerimónia, bebia uns cálices. O Leonel era pedreiro, um excelente pedreiro de pedra. Dos melhores da zona. Magro, relativamente alto, com nariz proeminente, era sempre alvo da chacota do pessoal. Eu gostei sempre do Leonel. Hei de contar uma aventura em Lisboa com ele.

Na cerimónia era gabado quem matasse o porco mais rápido. O Fernando Brito, gozão, quando o Leonel denotava alguma dificuldade dizia sempre “Leonel, tenho a caçadeira no carro, queres que a vá  buscar?”. Para o Leonel, aquelas palavras eram autênticas facadas. Abanava a cabeça como se não entendesse o que se passava, sendo ele um exímio matador de porcos. O porco, depois de longa agonia, lá morria, não sei se do ferimento se de solidariedade para com o Leonel, para não o deixar mal visto.

De seguida, abria-se o porco e o Fernando Brito, subtilmente, espetava a faca no coração do cevado e apontava para o Leonel “estás a ver, Leonel? Não falhaste!”. O Leonel inchava na sua vaidade e dizia “eu bem me parecia que lhe tinha dado com o toque”. 

Seguia-se a comezaina. Sangue, cachola guisada e febras. As febras começaram a entrar na ementa depois do aparecimento do genro do meu tio, o João Martins, mais pródigo do que o meu tio. Dessa gente toda, só eu estou vivo. A última a partir foi a minha tia Dionísia, o ano passado. A minha prima Amélia não fazia parte desta história.

escrito por Carlos M. E. Lopes


 


0 comentário(s). Ler/reagir: