Palestina livre!

01
mai
2023

MEMÓRIAS SOLTAS * XXIII. O Saco

No final dos anos setenta, princípios de oitenta, já casado, voltei a estudar. Fiz o propedêutico e candidatei-me ao curso de direito a Lisboa e Coimbra ou sociologia em Lisboa e Coimbra. Fiquei em direito, em Lisboa.

Os três últimos anos, fi-los em Lisboa, tendo para o efeito arrendado um quarto na Rua Ator Vale e depois em Alvalade, na Rua Afonso Lopes Vieira.

Havia um casal que eu e um familiar meu, também estudante à época, visitávamos com alguma regularidade. Eu ia para ver os jogos do Benfica e aproveitava para tirar a barriguinha da miséria. A D. L era uma excelente cozinheira e transformava as sobras em pitéus. 

Também íamos lá buscar consumíveis que a família mandava. Laranjas, chouriço Revilla, bolachas Cuétara, roupa lavada. Às vezes, combinava com esse familiar e íamos juntos ou encontrávamo-nos lá. Lá chegados, o marido da senhora ainda não estava em casa. A D. L punha-nos à vontade "há aí whisky, estejam à vontade. Se não estiver aberta, abram e há mais". E havia. Modestos, dizíamos “D. L bebemos desta que já está aberta”. Era uma Swing, geralmente. Ao sairmos, já depois da meia-noite, a Swing balançava ainda, mas vazia.

Um dia, fomos a casa da D. L buscar um saco. Como eram coisas minhas, alombei com o saco, pesado. Fomos a pé. A casa ficava na Rua Sousa Viterbo, perto do Alto de S. João. Seguimos para a Graça, Limoeiro, Sé. Eu lá ia mudando de mão, pois o saco pesava. E lá íamos conversando de política. Sempre muito entusiasmados. As pegas do saco faziam-me doer a mão. Eu mudava constantemente de mão. 

Eu não consigo fazer duas coisas ao mesmo tempo: ou tomava conta do saco ou da conversa. Tanto eu como o meu familiar tínhamos sido do MR, pelo que tínhamos algumas leituras políticas coincidentes, ainda que ele já fosse do PSD. Deitávamos governos abaixo, com paixão e denodo. Quanto mais andávamos, menos atenção dava à conversa. 

Conheço pessoas que conseguem fazer duas coisas ao mesmo tempo. Diz-se que Clinton lia relatórios complexos, enquanto via um jogo na televisão. Guterres, também. Marcelo deve fazer três sacanices ao mesmo tempo. Disseram-me que tem que ver com o cérebro. Se biológico, estou safo…

Chegados ao Rossio, já não havia Metro. Eu já não sentia as mãos. Subida dolorosa da Avenida da Liberdade. Sempre com animada conversa, a que eu não podia dar a atenção devida. Fontes Pereira de Melo -- e eu, derreado. O meu familiar, livre e leve. Nem perguntou se eu precisava de ajuda, antes afivelava um habitual e natural sorriso cínico. Saldanha. Atacamos a Avenida da República. Eu, desesperado. 

Frente ao Campo Pequeno, paramos. Ele morava na Avenida 5 de outubro e eu, no Bairro de Alvalade. Despedimo-nos. Foi então que o cretino me disse “dá-me o saco, que o saco é para mim”. Pensei estrangulá-lo, revi as lições de direito penal num ápice. Não encontrei álibi. Não há álibi para os trouxas. Estou arrependido de não o ter estrangulado. Hoje, seria feliz, tinha lavado a minha honra e já estava cá fora. 

escrito por Carlos M. E. Lopes

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