Uma das principais questões éticas é esta: por que razão havemos de ser morais? ou, numa formulação que aparentemente nada tem que ver com a anterior: qual o critério que nos permite distinguir uma acção boa de uma acção má?
Segundo os defensores da teoria dos mandamentos divinos, Deus é a resposta às duas questões. Uma acção boa é aquela que é ordenada por Deus. Devemos ser morais porque, se o não formos, seremos punidos por Deus.
Esta teoria levanta alguns problemas. Daniel Kolak e Raymond Martin
[Sabedoria sem Respostas: uma breve introdução à Filosofia. Lisboa: Temas e debates, 2004, p. 138-9]
formulam alguns, sem jamais referirem expressamente aquela teoria:
Segundo os seus defensores, Deus "transmite-lhe a verdade de como se deve viver. O trabalho do leitor consiste em aprender as verdades de Deus e para isso é necessário instrução. Invariavelmente, contudo, por alguma razão Deus escolhe transmitir essas verdades não a si mas a eles, normalmente a quem quer que seja que já se encontre no poder. A razão por que Deus escolhe revelar a verdade apenas a alguns intermediários do sexo masculino em vez de a revelar a todos nós revela talvez mais uma daquelas formas misteriosas e surpreendentes que Deus tem de trabalhar.escrito por ai.valhamedeus
Mas, mesmo que Deus transmita as verdades acerca do modo como devemos viver a algumas autoridades seleccionadas, como sabemos quais são as autoridades genuínas? Deus não estica um braço do Céu para apontar para elas. É convenientemente deixado às próprias autoridades o papel de nos esclarecer quem são as genuínas autoridades. Invariavelmente, elas identificam-se a si mesmas ou a membros do seu grupo, discordando com veemência entre si sobre quem são as autoridades genuínas — a ponto de se matarem umas às outras ou (o que é mais comum) a ponto de animarem os seus seguidores para fazerem a matança e morrerem por eles.
Portanto, como se sabe quais são realmente as verdades de «inspiração divina»? () leitor poderia escolher quaisquer umas das que as suas próprias autoridades lhe ensinaram e deixar a coisa por aqui. Mas isso seria arbitrário. E, em qualquer dos casos, por que razão faria isso? Porque é o que as suas autoridades dizem? Por que razão deve ouvi-las? Porque é o que elas dizem o melhor para si? Como é que elas sabem o que é melhor para si? Porque Deus lhes disse? Como é que sabe que Deus lhes disse? Porque elas dizem que sim? Como é que sabe se as autoridades não estão a mentir ou não estão enganadas? Não sabe. Por isso, mesmo que algumas autoridades adquiram de facto a verdade de Deus, isso de nada lhe servirá. Mas, mesmo supondo que elas procedam no intuito de proporcionar ajuda, isso tem levado, historicamente, à intolerância, à violência, ao derrame de sangue, ao sofrimento, à repressão, à confusão, ao medo, ao ódio e à morte.
3 comentário(s). Ler/reagir:
Muito bem!
Se assim é, que lugar têm, nas diversas religiões, a consciência moral e a oração (diálogo com Deus...sendo diálogo, pressupõe-se uma troca de palavras, uma inter-acção entre os interlocutores...)?
Não estou a ver como é que o tal "interprete genuíno" poderá estar presente a estes níveis, contudo, alguém me poderá esclarecer... Aceito!
Bem, se for à posteriori, como designarei o "diálogo" e a "voz da consciência"?
Estranho, muito estranho...
Já agora, valeria a pena clarificar algo que aqui nunca é dito...e que é fundamental para se perceber algo de importante e um pouco alheio à nossa cultura, o conceito de "tradição viva"...
Vale a pena reflectir sobre o assunto para não sermos "mais papistas que o papa"!
Não se pode acreditar em coisas impossíveis (diz Alice).
«Suponho que tens falta de treino», diz a rainha... «Aconteceu-me algumas vezes acreditar em seis coisa impossíveis antes do pequeno-almoço.»
Lewis Carroll, Do outro lado do Espelho
Para que os poderosos se pudessem manter na governação (e isto foi especialmente flagrante no passado mais ou menos recente) era conveniente a benção e protecção divinas e o tal diálogo privilegiado do poder com entidades e deus(es) pouco disponíveis para ouvir a populaça.
Já não é assim em muitos países de maioria católica mas, lamentavelmente, ainda assim é na quase totalidade dos países muçulmanos.
A minha descrença total em entidades divinas provém muito da constatação deste histórico encosto da religião aos poderosos e do ciclo, "cria-se uma nova religião que aglutina os oprimidos, que se tornam uma força social poderosa, derrubando os anteriores tiranos, tomando o poder e instituindo de novo todas as maldades contra as quais vinham lutando".
Recentemente vi um filmezeco, Ágora, em que este ciclo está razoavelmente bem descrito...
Enviar um comentário