Para não esquecer...

DO CONTRA [53] CONTRA A TEORIA DOS MANDAMENTOS DIVINOS

Por que havemos de ser moraisUma das principais questões éticas é esta: por que razão havemos de ser morais? ou, numa formulação que aparentemente nada tem que ver com a anterior: qual o critério que nos permite distinguir uma acção boa de uma acção má?

Segundo os defensores da teoria dos mandamentos divinos, Deus é a resposta às duas questões. Uma acção boa é aquela que é ordenada por Deus. Devemos ser morais porque, se o não formos, seremos punidos por Deus.

Esta teoria levanta alguns problemas. Daniel Kolak e Raymond Martin
[Sabedoria sem Respostas: uma breve introdução à Filosofia. Lisboa: Temas e debates, 2004, p. 138-9]
formulam alguns, sem jamais referirem expressamente aquela teoria:
Segundo os seus defensores, Deus "transmite-lhe a verdade de como se deve viver. O trabalho do leitor consiste em aprender as verdades de Deus e para isso é necessário instrução. Invariavelmente, contudo, por alguma razão Deus escolhe transmitir essas verdades não a si mas a eles, normalmente a quem quer que seja que já se encontre no poder. A razão por que Deus escolhe revelar a verdade apenas a alguns intermediários do sexo masculino em vez de a revelar a todos nós revela talvez mais uma daquelas formas misteriosas e surpreendentes que Deus tem de trabalhar.

Mas, mesmo que Deus transmita as verdades acerca do modo como devemos viver a algumas autoridades seleccionadas, como sabemos quais são as autoridades genuínas? Deus não estica um braço do Céu para apontar para elas. É convenientemente deixado às próprias autoridades o papel de nos esclarecer quem são as genuínas autoridades. Invariavelmente, elas identificam-se a si mesmas ou a membros do seu grupo, discordando com veemência entre si sobre quem são as autoridades genuínas — a ponto de se matarem umas às outras ou (o que é mais comum) a ponto de animarem os seus seguidores para fazerem a matança e morrerem por eles.

Por que havemos de ser moraisPortanto, como se sabe quais são realmente as verdades de «inspiração divina»? () leitor poderia escolher quaisquer umas das que as suas próprias autoridades lhe ensinaram e deixar a coisa por aqui. Mas isso seria arbitrário. E, em qualquer dos casos, por que razão faria isso? Porque é o que as suas autoridades dizem? Por que razão deve ouvi-las? Porque é o que elas dizem o melhor para si? Como é que elas sabem o que é melhor para si? Porque Deus lhes disse? Como é que sabe que Deus lhes disse? Porque elas dizem que sim? Como é que sabe se as autoridades não estão a mentir ou não estão enganadas? Não sabe. Por isso, mesmo que algumas autoridades adquiram de facto a verdade de Deus, isso de nada lhe servirá. Mas, mesmo supondo que elas procedam no intuito de proporcionar ajuda, isso tem levado, historicamente, à intolerância, à violência, ao derrame de sangue, ao sofrimento, à repressão, à confusão, ao medo, ao ódio e à morte.
escrito por ai.valhamedeus

3 comentário(s). Ler/reagir:

Fátima Rodrigues disse...

Muito bem!
Se assim é, que lugar têm, nas diversas religiões, a consciência moral e a oração (diálogo com Deus...sendo diálogo, pressupõe-se uma troca de palavras, uma inter-acção entre os interlocutores...)?

Não estou a ver como é que o tal "interprete genuíno" poderá estar presente a estes níveis, contudo, alguém me poderá esclarecer... Aceito!

Bem, se for à posteriori, como designarei o "diálogo" e a "voz da consciência"?

Estranho, muito estranho...

Já agora, valeria a pena clarificar algo que aqui nunca é dito...e que é fundamental para se perceber algo de importante e um pouco alheio à nossa cultura, o conceito de "tradição viva"...

Vale a pena reflectir sobre o assunto para não sermos "mais papistas que o papa"!

jcosta disse...

Não se pode acreditar em coisas impossíveis (diz Alice).
«Suponho que tens falta de treino», diz a rainha... «Aconteceu-me algumas vezes acreditar em seis coisa impossíveis antes do pequeno-almoço.»


Lewis Carroll, Do outro lado do Espelho

vitor m disse...

Para que os poderosos se pudessem manter na governação (e isto foi especialmente flagrante no passado mais ou menos recente) era conveniente a benção e protecção divinas e o tal diálogo privilegiado do poder com entidades e deus(es) pouco disponíveis para ouvir a populaça.
Já não é assim em muitos países de maioria católica mas, lamentavelmente, ainda assim é na quase totalidade dos países muçulmanos.
A minha descrença total em entidades divinas provém muito da constatação deste histórico encosto da religião aos poderosos e do ciclo, "cria-se uma nova religião que aglutina os oprimidos, que se tornam uma força social poderosa, derrubando os anteriores tiranos, tomando o poder e instituindo de novo todas as maldades contra as quais vinham lutando".
Recentemente vi um filmezeco, Ágora, em que este ciclo está razoavelmente bem descrito...